terça-feira, 31 de agosto de 2010

Narrativas curtas - Adriana Bernardes

Trava língua
Ele a olhou querendo libertar as palavras
Há tempos não dizia isso a ela, e queria mesmo lhe dizer
Ela o olhou delicada e disse: “boa noite, meu amor”
E ele respondeu: “boa noite, querida”
E em seus pensamentos ele finalmente disse: “eu amo você”

Travessuras Inocentes
Pedrinho admirava muitos os pássaros.
Gostava tanto que queria ter um para si.
Um dia Pedrinho fez uma arapuca.
Estava de olho num filhote de pardal que se perdeu do ninho e mal sabia voar.
Pedrinho o pegou. Foi muito fácil. Ele estava muito feliz.
No outro dia Pedrinho encontrou seu novo brinquedo morto na gaiola.

Certezas da infância
Camila sonhava em ser uma bailarina.
Seu brinquedo favorito era uma caixinha de música que tinha uma linda bailarina num vestido rosado.
Ela dava corda e a bailarina dançada incansavelmente.
Camila a acompanhava. Vestia o vestido mais lindo que possuía e colocava-se a dançar.
Um dia Camila ganhou uma Barbie Jornada nas estrelas e passou a sonhar em ser uma astronauta.

O que ser quando crescer
Camila sonhava em ser astronauta.
Brincava dia e noite com sua Barbie jornada nas estrelas.
Certo dia, cansada, Camila ligou a TV.
Naquele exato momento passou a sonhar em ser uma “mulher fruta”.


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Produção proveniente do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

sábado, 28 de agosto de 2010

Narrativas curtas - Amanda Correa


A insustentável leveza do não-ser

Saiu de casa como de costume. Atravessou a rua rumo ao trabalho. Pensou em parar. Continuou. Iniciou os mecanismos diários para o cumprimento dos deveres. Voltava para casa. Pensou em parar. Parou. Com um sorriso aliviado, deitou-se nos trilhos do metrô que o levaria para casa. O peso de viver, não mais.
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Produção proveniente do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita.


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Narrativas curtas - Ana Paula Kinas Tavares





Jogo do amor

   Tão inesperado quanto um gol aos 46 nasceu aquele amor. Como argilosa árbitra marcou um falso impedimento e anulou o sentimento.


Fuga

   Ela corria, corria. Não estava atrasada, não queria ir, nem tinha pressa. Tampouco sabia para aonde ia. Corria porque temia não mais partir.


Despedida

   Ela tirou o anel silenciosamente e o devolveu. Abriu a porta e não mais voltou. Ele adoeceu.


Fim

   Eu o amava como quem ama uma canção. Admirava seus poentes e luares, compartilhava suas fases e questionava suas auroras. Só no dia que o vi morrer entendi que nada além do amor é perene.


Sair do ninho

   Não comia mais em casa. Levou umas mudas de roupa, deixava no carro dois pares de sapatos. Comprou toalhas e lençóis e os deixou lá. E só me entregou a chave quando carregou os livros.
   Dei minha benção.


Aniversário

   Esperou pelos 80 anos, convidou todos os amigos, dançou e bebeu em seu último aniversário.


Carnal

   Primeiro os olhos, depois as mãos, e só quando me tomou com os lábios se entregou. Desejava-me tanto quanto eu a ele, contudo negava até o último gemido.
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Produções provenientes do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Narrativas curtas - Jessica Bianchi

A menina do livro rico
Era um livro, sem ilustrações, sem letras. Abandonado em um sebo qualquer, por uma pechincha.
A menina comprou-o: nunca estivera tão feliz por encontrar o que tanto queria sem precisar procurar. Na primeira banca, deparou-se com o livro mais rico que já pudera ter: o livro da imaginação.

O homem e o andarilho
Ele corria apressado como se não houvesse amanhã. Foi abordado pelo andarilho. Irritado, descartou-o. Avistou de longe o ônibus que se aproximava. Contou as moedas que carregava na algibeira: não era o suficiente. O ônibus chegou. O ônibus partiu.
Desanimado, caminhou até o andarilho e entregou-lhe as moedas.

Dezembro
Era uma vez um peru feliz. Vivia desfilando na fazenda, exibindo-se para os outros animais.
Dia 21, desfilava.
Dia 22, desfilava.
Dia 23, desfilava.
Dia 24, na mesa a fome alheia saciava.
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Produções provenientes do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

sábado, 21 de agosto de 2010

Sétimo Círculo: Narrativas Curtas II

Na manhã de hoje, sábado, encontramo-nos para o sétimo encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita, na sala do Lappe, das 9h às 11h. 

A proposta foi a de continuarmos as leituras de narrativas curtas, para que pudéssemos, a partir das leituras, pensar em novas produções escritas, agora voltadas para este recorte literário: o texto curto, não necessariamente o microconto. Inclusive, não lemos microcontos, aquelas narrativas de uma só linha, de no máximo cinquenta ou cem palavras, por exemplo. Nossas leituras ficaram focadas em narrativas de poucas linhas.

Finalizamos, primeiramente, a leitura do livro "O triste fim do pequeno menino ostra e outras histórias", do Tim Burton. Novamente pudemos observar o tom trágico que seus contos apresentam. E outros detalhes nos surgiram, como por exemplo o uso de palavras como "menino e menina" nos títulos da maioria dos contos do livro. E a referência ao natal em algumas histórias do livro. Algo que somente acentua os socos-de-vida levados pelos personagens. Seguem duas das narrativas lidas hoje, da parte final do livro (para visualizar melhor, basta clicar nas imagens).




Na sequência à leitura e às conversas sobre o livro de Burton, passamos a ler algumas narrativas de dois livros do escritor português Gonçalo M. Tavares. Se no livro de Burton observamos uma forma de escrita toda em versos, ora ritmados, ora não, mas sempre apresentando um ritmo de leitura em prosa, a escrita de Gonçalo é toda em prosa, porém com a mesma intensidade trágica, com o mesmo texto seco, de poucas e essenciais palavras. Talvez a característica mais forte da narrativa curta - e também do microconto - seja justamente esta, a da concisão de palavras. Ao escritor cabe pouco dizer em palavras, e muito dizer naquilo que Piglia chama de segunda história de um conto. Segunda história esta que cabe totalmente ao leitor construir. Ou o leitor muito colabora na criação de sentido junto à narrativa curta, ou ela não cumprirá seu propósito.

Alguns exemplos de narrativas de Gonçalo:




Do livro "O senhor Brecht", um livro em que as narrativas muito lembram as de Burton, pelo tom trágico, pelo tom crítico, pela ironia mordaz e pelas metáforas construídas:

"O perigo da cultura

Uma galinha pensava tanto e era tão culta que ganhou uma obstrução interior, deixando de pôr ovos. Mataram-na no dia seguinte".

"A importância dos filósofos

O filósofo dizia que só os homens faziam o importante, enquanto os animais só dispunham de ações insignificantes.
Foi então que chegou o tigre e devorou o filósofo, comprovando com os dentes a teoria anteriormente apresentada". 

"Diamantes

Em vez de uvas os cachos do reino deixavam cair sobre a terra diamantes.
- Diamantes, diamantes, diamantes! Há anos que é só isto - queixava-se o produtor". 

"Estética

Uma mulher gorda que queria perder peso chegou ao médico e disse: 
- Corte-me uma perna". 



Do livro "O senhor Calvino", em que as narrativas são um pouquinho mais longas do que as do livro anterior, e apresentam um grau de surrealismo antes não observado. Há, aqui também, a noção de brevidade da vida e de tudo o que a envolve. 

"O animal de Calvino

De manhã Calvino dirigia-se à cozinha para dar de comer ao Poema. O bicho devorava tudo: nenhum alimento era desagradável ou esquisito - e tudo para ele parecia ser alimento.
Ao fim do dia, depois de terminadas as tarefas urgentes, o senhor Calvino acariciava-lhe o pêlo com a delicadeza e a hábil distração aparente dos tocadores de harpa. Naqueles instantes, o universo abrandava as rotações ganhando a lentidão inteligente dos pequenos felinos.
Dar banho ao Poema não era fácil; ele como que resistia à limpeza, exigindo de modo saltitante uma liberdade impudica que só a sujidade permite. Mas bem pior ainda era dar ao bicho uma injeção. Era a única altura em que as garras eram dirigidas a Calvino. Aquele animal preferia adoecer, a ser medicado.
Um dia o animal caiu da janela do 2° andar, e morreu.
Calvino, no dia seguinte, adotou outro.
E deu-lhe o mesmo nome".

A partir, então, destas leituras, está feita a proposta aos integrantes do Círculo. Produção de narrativas curtas. Que muito exijam do leitor dar vida a elas. 


Ítalo Puccini, pesquisador mediador.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Chuva de razões - Jessica Bianchi

Daniel era o que eu podia chamar de “caráter instigante”. Primeiro porque, entre todas as coisas, o que colho das pessoas é o inapalpável. E depois, essa característica oscilava nele. Ora conservador, com aquele olhar atento; ora disperso, desorientado, como que procurando seus próprios valores inestimáveis em outra pessoa.
Naquela tarde de segunda-feira, dia em que a sociedade sempre se vê cansada, ele estava lá, com aquele caminhar determinado, vestindo jeans surrados, e no corredor a iluminação dava um destaque especial ao seu olhar malicioso que me despertava ainda mais interesse. Escondeu-se na terceira sala, enquanto eu aguardava sua passagem, a uma sala de distância de onde entrou.
Chovia. Foi em um dos dias mais escuros de minha vida, no mês de outubro. Chovia. Esperei-o. Observei-o. Foi uma troca de monossílabos significantes. E dentro de mim a trovoada continuava, amansada pelo início de uma possível conquista.
Fui para casa. Senti a necessidade de uma conversa que me fizesse crer que alguém tem uma dor maior que a minha. Era noite e eu não tinha como procurá-lo. Era sexta, e talvez não o visse nos próximos dois dias. Não via a hora do tempo passar e fitar aquele rosto. O pouco que conheci me fez perceber que era uma pessoa só: não só de espírito, mas só em seus pensamentos, nas suas memórias. Com aquele jeito casual de se vestir, com aquela formalidade ao me dirigir a palavra, me conquistou.
Adormeci. Acordei sem esperanças e resolvi sair de casa. Na rua, andando solitária, encontro-o sentado em um banco. Achei que fosse ilusão, mas ele me disse oi de uma maneira surpreendente, informal. Ato mágico. Perguntei se ia demorar ali; respondeu que talvez, pois esperava o ônibus.
Minha face pôde ser lida por ele, sem mais dúvida: desapontamento. Devia eu perguntar aonde ele ia? Medo de estar me envolvendo nas intimidades alheias.
Seria pela minha indecisão, seria pelo destino... Seja qual fosse a razão, levou tempo demais e o ônibus chegou. O inexplicável levou-o. Eu fiquei. Ainda não pude dizer o que precisava dizer. Mas o conhecia. O suficiente, como se fosse há anos. Sabia que costumava levantar às oito, que tinha aquele jeito padrão de se vestir, mas que mesmo assim não deixava de chamar a atenção; que gosta das letras e das canções clássicas, que prefere comédias a filmes de terror e que é fã de best sellers. Gosta da chuva e da tempestade, adora animais e zela pela natureza.
O conhecia tanto... E sabia que ele também já me conhecia. Era apenas uma continuação. Sabia que há muito tempo ele aprendera as leis da vida, e que o que precisasse acontecer entre nós aconteceria. Eu esperaria.
Começou a chover. Mas cada gota bastava e me explicava que a vida vale a pena ser vivida quando se vive ao lado de outra vida.
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Produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Sexto círculo: Narrativas curtas I


Na noite de hoje encontramo-nos para o sexto encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita, na sala do Lappe, das 18h às 19h.

Após termos lido e discutido sobre as narrativas dialogadas e com caráter descritivo acentuado, no encontro de hoje - e também já prometido continuarmos no próximo encontro - lemos e conversamos sobre a proposta de escrita de narrativas curtas. De microcontos não exatamente no formato escrito de contos, mas buscando também a escrita por outras formas, como a de versos curtos que formam uma narrativa. É o momento de voltarmos nossos olhares leitores para a forma como o texto é escrito. Não só para o que ele conta, como também para a forma com que ele conta.

E isto foi algo que tivemos a oportunidade de observar nas leituras que fizemos das narrativas presentes no livro "O triste fim do pequeno menino ostra e outras histórias", do produtor de cinema americano Tim Burton, diretor de filmes como "Edward, mãos de tesoura", "Os fantasmas se divertem", "O estranho mundo de Jack", "Batman", "A noiva cadáver", "A fantástica fábrica de chocolate", "Peixe grande" e "Alice no país das maravilhas".

Um livro riquíssimo não só nas narrativas e na maneira como as histórias são contadas. Mas também no trabalho de ilustração que a obra apresenta. Traços e cores bastante vivas, que impactam o leitor e que contribuem muito para os sentidos criados junto aos textos lidos. Um exemplo de como imagem e texto podem se fundir na criação de sentidos por parte dos leitores. 

Um aspecto marcante nas narrativas lidas neste encontro foi o da tragédia presente em cada história. Finais que chocam com uma simplicidade narrativa que deixa os leitores com cara de paisagem, perguntando-se realmente como foi possível terminar daquele modo tal história. Há, também, uma construção de personagens "estranhos" a este mundo. Personagens nitidamente fora da construção de normalidade. Personagens que existem - ou ao menos tentam - nas laterais, nas sobras, nas rebarbas da existência. Personagens atordoados que buscam um porquê de existir da forma que existem. Personagens que clamam pelo olhar do leitor sobre eles. Quem sabe para salvá-los. Quem sabe para somente acompanhar suas trajetórias de vida. 

Conforme consta em uma das orelhas do livro, "Como seus personagens, este livro parece deslocado. Não se enquadra em nenhum nicho. É triste, mas engraçado. É infantil, mas adulto. A mente de Burton é um universo à parte. E este livro parece ser sua melhor radiografia". 

Seguem quatro narrativas presentes no livro. Que cada leitor possa  se deslocar a partir delas  da melhor maneira possível. 

A primeira: 
A segunda:


A terceira:
A quarta:

Ítalo Puccini, pesquisador mediador.