domingo, 17 de outubro de 2010

Décimo - e último - círculo: começos


O título desta postagem, que aponta para uma possível contradição entre duas palavras de sentidos opostos - último e começo - tem um porquê. Realizamos, de fato, o décimo e último encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita. Um encontro em que conversamos sobre o filme assistido no encontro anterior (ver post anterior), e também fizemos a leitura da introdução e da conclusão do livro "E a história começa", do escritor israelense Amós Oz. E foi a leitura destes dois textos de Oz que leva à contradição do título: o último encontro, em que muito conversamos sobre começos de histórias.

Após, então, a conversa sobre o filme "Narradores de Javé", iniciamos a leitura dos dois textos do livro do Amós Oz. No primeiro texto, que é a introdução do livro, o autor discorre sobre a dificuldade que é iniciar uma história. Ele admite sentir inveja de seu pai, que escrevia livros acadêmicos, e que, por isso, sempre quando ia escrever algo, sentava-se rodeado de livros e, a partir deles, produzia. A inveja sinalizada por Oz é a de que para ele, escritor de histórias, e não de textos acadêmicos, sentar para escrever algo era "encarar uma única e zombeteira página em branco no meio de uma mesa árida, como uma cratera na face da lua. Somente eu e o vazio e desespero. Experimente alguma coisa a partir de absolutamente nada". E este trecho nos levou a pensarmos nesta "escrita a partir do nada". Até que ponto ela de fato existe e assim acontece? Até que ponto produzimos de um nada? Que nada é esse?

Segundo Oz, "Uma página em branco é, na verdade, uma parede caiada sem porta ou janela. Começar a contar uma história é como passar uma cantada numa pessoa inteiramente desconhecida, num restaurante". E no restante do seu texto o autor israelense vai apresentando ao leitor inúmeras possibilidades de se começar uma história envolvendo alguns personagens definidos por ele. Mas e desde quando teriam que ser aqueles personagens? Como definir sobre qual personagem iremos contar algo? E o que deste personagem será contado ou escondido do leitor. E mais, de que forma poderemos contar esta(s) vida(s)?

Um texto que leva o leitor a inúmeras perguntas sobre este processo de começar uma história. Um texto que pode ser marcado por uma frase de apenas três palavras, que praticamente divide o texto ao meio: "É difícil começar".

Talvez por isso a proposta de escrita final para o grupo transita por isto: escrever sobre como é escrever o início de uma história. Escritas que vão apresentar um tanto de metalinguagem. Que histórias com inícios de histórias serão postadas neste blog, como forma de encerrar o trabalho desenvolvido durante estes oito meses de encontros para leituras e escritas?

O texto de conclusão do livro de Oz aponta para o resgate da leitura como prazer ocioso para o leitor: "os prazeres da leitura, como outros prazeres, devem ser consumidos em pequenos goles". E é com dois parágrafos deste texto que encerro estes escritos sobre os encontros deste grupo de leitura, destes leitores em formação que nos dispusemos a ser.

"O jogo da leitura requer que você, leitor, assuma uma parte ativa, traga o campo de sua própria experiência de vida e sua própria inocência, bem como cuidado e astúcia. Os contratos iniciais são às vezes esconde-esconde e às vezes uma espécie de jogo tipo Genius e às vezes mais parecidos com um jogo de xadrez. Ou pôquer. Ou palavras cruzadas. Ou uma travessura. Ou um convite para um labirinto. Ou um convite para dançar. Ou um galanteio zombeteiro que promete mas não entrega, ou entrega os itens errados, ou entrega o que jamais prometeu ou entrega apenas uma promessa.
E em última análise, como com qualquer contrato, se você não ler as letras miúdas, pode ser ludibriado; mas às vezes pode ser ludibriado precisamente por se atolar nas letras miúdas e não conseguir ver a floresta, de tanto olhar as árvores".

Ítalo Puccini, pesquisador mediador. 

Décimo - e último - círculo: conversa sobre o filme


No primeiro momento do último encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita fizemos uma conversa sobre o filme "Narradores de Javé", ao qual assistimos no encontro anterior. Esta conversa transitou pela trama, pela importância que adquirem a memória e a oralidade na história, e pelos caminhos que o filme nos leva à literatura. Tudo acontece, no filme, a partir do drama que enfrentam os moradores de Javé: a instalação de uma usina elétrica no vilarejo vai levá-lo a não mais existir no mapa. E a solução que lhes resta é uma só: registrar por escrito o vilarejo, tornando-o de valor histórico e científico, conforme falam. É preciso contar a história de Indalécio, o fundador de Javé.

Eis, então, o momento em que surge o personagem Antonio Biá, o salvador dos habitantes de Javé, aquele que em anos anteriores fora expulso de lá pelo motivo que agora o trazia de volta: a escrita de histórias. Biá é chamado para escrever a história de Javé, por ser o único ali que sabe escrever (Biá trabalhava na agência dos correios em Javé. Como ninguém fazia uso da escrita e da leitura, ele passou a inventar histórias dos moradores da localidade, como forma de tornar a agência movimentada, e assegurar seu emprego. Justamente por isto foi expulso pelos moradores quando descobriram o que ele inventava). 

No momento em que Biá passa a ouvir as histórias dos moradores de Javé é que passamos nós, telespectadores, a percebermos como a memória oral de cada um privilegia aspectos e detalhes que ninguém conhece, e que jamais serão registrados como de fato aconteceram. Passamos a perceber o quanto a escrita não dá conta daquilo que é da oralidade. E também o quanto toda escrita fica marcada por aquele que a produz, o que nos leva a pensarmos na isenção do historiador no momento de registrar uma história.

Biá vai ouvindo as versões de cada habitante de Javé. Cada um "puxando a sardinha" para o seu lado, apresentando algum detalhe que antes não havia (a imagem acima é marcante nisto. É o momento da história em que dois irmãos discutem muito querendo fazer valer cada um a sua versão para os fatos). Como já dizem os ditados, quem conta um conto, aumenta um ponto. E existem sempre três verdades: a minha, a sua, e a que de fato existe. E Biá deixava claro aos moradores: Uma coisa é o fato acontecido. Outra, o fato escrito. E as verdades produzidas pelos moradores do vilarejo são compostas de memória. De uma memória mítica, onde se encontra com a fala. Uma memória que é feita de fala, que é produzida pela narração. 

Diante disso, algumas pontes que podemos fazer com a literatura fazem referência a dois aspectos textuais apresentados pelo teórico Mikhail Bakhtin, a polifonia (as várias vozes de um discurso, uma vez que a coexistência de inúmeros narradores, narrativas e formas de narração compõem uma heterogeneidade discursiva, que é o que observamos no filme, nas várias narrativas que o compõem) e o dialogismo, a partir de uma citação do próprio Bakhtin: "Tudo se reduz ao diálogo. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina, nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida". 

Além disso, nossa conversa sobre o filme levou às várias leituras que podem e devem ser feitas de uma mesma história. A história de Javé é na verdade as histórias de Javé. A história de cada morador é a leitura que cada um deles faz da localidade em que vivem, o que prova que não existe uma só maneira de se ler algo, e sim maneiras de se ler. 

Ítalo Puccini, pesquisador mediador. 

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Narrativa curta - por Adriana Bernardes

A mão

Posso ter muitas habilidades.
Posso ser a mão que acarinha,
A mão que alimenta,
A mão que dá adeus,
A mão que se envolve no abraço,
A mão que limpa suas lágrimas,
A mão que mata.
Você é quem determina para que eu serei usada.




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Produção proveniente do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita.