sábado, 25 de setembro de 2010

Nono círculo: Narradores de Javé


Neste nono encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita, a proposta de leitura foi diferente. Ao invés de lermos contos, assistimos a um filme que oferece ao telespectador/leitor a possibilidade de conhecer a narração da história de um povoado. Ou as várias narrações de várias histórias de um povoado. Um caminho para pensarmos as diferentes leituras produzidas por cada leitor junto às histórias que lemos.

Não desenvolverei aqui, ainda, um escrito sobre o filme. Também porque não conversamos hoje sobre o mesmo.

Fica, sim, o convite para que todos possam assisti-lo, e então, no último encontro - e a partir dele, com uma escrita neste espaço - trocarmos as leituras que dele fizemos. 

Ítalo Puccini, pesquisador mediador. 

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Narrativa curta - por Adriana Bernardes


Tempo de deixar o tempo passar

O fogão a lenha estava aceso aquecendo toda a casa.
A chaleira chiava tentando chamar sua atenção.
Sob os pés uma sandália de tecido.
Ela mantinha seu ritmo na cadeira de balanço.
Não havia pressa, apenas tranquilidade e harmonia. 

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Produção proveniente do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Narrativas curtas - por Ítalo Puccini


1. sem título
no meio do rio havia uma pedra.
nela,
bateu a cabeça. 

2. sem título 
foi um rio que passou na vida dela e levou a cama, o sofá, o tapete, a casa e o filho.

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Produções provenientes do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Oitavo círculo: contraponto

Na noite de hoje, terça-feira, encontramos para o oitavo encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita, na sala do Lappe, das 18h às 19h. Estivemos presentes em sete pessoas para este encontro que encaminha o círculo para o seu final.

A proposta de leitura foi de dois autores de épocas e estilos de textos bastante diferentes: Marcelino Freire e Carlos Drummond de Andrade.


Iniciamos o encontro lendo alguns contos do livro "Rasif", de Marcelino Freire. Contos, em sua maioria curtos, de duas, três páginas, que primam por um trabalho riquíssimo de pontuação. As frases são muito curtas. Entrecortadas. Contos muito pausados, que pedem uma forma de leitura bastante diferente. É preciso lê-los de maneira bastante dinâmica, bastante ritmada, sob o risco de perder a potência sugerida pelos contos. E foi deste modo que fizemos. Cada um lia até um ponto final. E os contos eram compostos por frases realmente curtas, como é possível observar no trecho do conto "Chá": "Piorou. Hã? Piorou. Hum? Pirou, pirou. Xaropou. Não diz coisa. Com coisa. A bolacha. Nada com nada. Coitado! Hã? Coitado! Fulminante. Deu derrame. A bolacha. Passa. Ficou caduquinho". 

"Rasif" é um livro muito bonito, esteticamente falando. Edição da record, 2008, de capa dura, e com gravuras muito bem feitas por Manu Maltez (já é possível perceber pela gravura da capa). Não é um livro de se ler só pelas histórias que apresenta. É um livro de se sentir, de tocar e tocar, e correr as mãos por todos os espaços dele.


A explicação do nome do livro vem logo nas primeiras páginas, depois da ficha de catalogação. Diz assim: “recife. s.m. um ou mais rochedos no mar, à flor da água, ou perto da costa. do árabe rasif, terreno pavimentado com lajes, estrada pavimentada com rochedos. pernambuco. s.m. do tupi-guaraniparanã-puca, que significa ‘onde o mar se arrebenta’”.



“Rasif” é um livro de contos com uma linguagem bem trabalhada, cuidadosa, transgressora. São de contos que escancaram a vida em sua forma mais pura e cruel. Assim mesmo, contraditoriamente: purismo e crueldade. Que é a vida. Em “Rasif”, as personagens de Marcelino Freire não querem saber de oferendas falsas a falsos deuses/mitos, não querem saber da paz, “essa coisa de rico, que é bonita na televisão, e só, que causa a dor, e que não deixa”. Elas querem saber dos homens-bomba e de seus amores impossíveis, querem saber do que há de bonito no Afeganistão, em Bagdá, em mesquitas e na “Al-Qaida”. Querem saber dos revólveres em mãos de crianças, e ainda trazidos pelo papai noel. E, como não poderia deixar de ser, as personagens dos contos desse livro buscam o amor, acima de tudo o amor, “amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa. Como todo grande amor. A sua marca”. O que não significa que o encontram. Muito pelo contrário. Afinal, o amor também mata. E pode vir mascarado em um buquê de flores.



Após a leitura de alguns contos de "Rasif", lemos um conto do livro "Contos de aprendiz", de Carlos Drummond de Andrade. Um conto intitulado "Flor, telefone, moça", com uma proposta de escrita bastante diferente da presente nos contos de Freire, e muito próxima da presente nos contos que havíamos lido no quinto encontro, do Caio Fernando Abreu, em "Morangos Mofados". Um conto bastante descritivo, com temática também densa, que se utiliza do diálogo da forma como a aprendemos na escola, a forma clássica, com "outra linha, parágrafo, travessão". E também deste livro do Drummond ficou para ser livro o conto "Um escrito nasce e morre", um conto que explora muito bem a metalinguagem na literatura, quando no personagem podemos encontrar o autor do conto se descrevendo através da escrita. Encontramos um personagem que sinaliza o seu nascimento no momento em que começou a escrever, passando pelo seu desenvolvimento, com as atribuições que a escrita impeliu àquele personagem, chegando ao final, o momento em que o personagem “morre”, ou seja, deixa de escrever.

Há, ainda, em "Contos de aprendiz", uma epígrafe muito bonita que apresenta uma relação de um livro - desconhecido para nós - com uma história, com qualquer história que ele leia: "Nas histórias que ele nos contava, quando meninos, o que me prendia a atenção, a ponto de fascinar-me, não era o enredo, o desfecho, a moralidade; e sim um aspecto particular da narrativa, a resposta de uma personagem, o mistério de um incidente, a cor de um chapéu...". 

Levei, ainda, um pequeno trecho do livro "A estrada", do norte-americano Cormac McCarthy, apenas para que os participantes tomassem conhecimento do diálogo estabelecido entre pai e filho numa das cenas do romance. Mais sobre este livro pode ser lido aqui, inclusive o diálogo fotocopiado ao grupo.

Ficou, então, como proposta de escrita, a continuidade das anteriores. Construção de contos descritivos e/ou de narrativas curtas, explorando os recursos de diálogos, de pontuação, de ritmos de leitura que todo texto deve propor ao leitor. 

Ítalo Puccini, pesquisador mediador. 

sábado, 11 de setembro de 2010

Malas - por Juliano R. Maciel

   Um onisciente me contou que aquele homem carregava algumas malas consigo – nem poucas, nem muitas, mas pesadas – e as segurava em ambas as mãos enquanto adentrava no longo veículo automotivo onde sentamo-nos, almas que somos, como livros dispostos nas prateleiras. Esse veículo, vulgo ônibus, movia-se com certa ligeireza a cada volta de suas rodas.
   O fato é que um sujeito de preto entrara quase junto daquele homem. O outro fato é que ambos entraram no ônibus no último ponto antes daquela curva bem fechada. O último fato antes do fato derradeiro é que o motorista, pensando morte e vida de Jesus Cristo, não diminuiu a velocidade e todos os passageiros em pé cambalearam muito.
Mais cambaleou o homem das malas, pesadas que estavam, fazendo-o vacilar como bêbado na corda bamba. A mochila nas costas não ajudou. Ia estabacar-se de certo no chão, fazendo as narinas cheirarem o pó pisado de muitos solados no chão do coletivo. Mas no momento que todos os passageiros caíram de lado nos bancos ou agarraram-se às travas para sua segurança, o tal sujeito de preto manteve-se ereto e avançando como carvalho que entre juncos despreza o vendaval. Ele segurou o homem das malas e livrou-se de queda certa dizendo-lhe, enquanto o colocava de volta na verticalidade que é do homem: “da próxima vez, largue a bagagem e fique com sua vida.” E evadiu-se para um último acento vago do lado da velha tossideira.
   Alívio e lombo cansados (das chicotadas do relógio) fizeram o homem das malas chegar célere, sem se perceber, no espaço geométrico ocupado por sem-razões (doravante, casa) e tomar um trago de café frio como cuspe da morte sobre a mesa da cozinha. Ali estava a esposa, jovem também.
   “Aventura incrível no ônibus da rodoviária pra cá.”
   “Traste imprestável. Você demora sempre. Conseguiu fechar negócios? Somos pobres?”
   E diante da aspereza de uma pele tão macia o homem fez murchar seu sorriso de parca excitação menestrélica ao engolir o que ouvira no ônibus. Fez bem, pois ao engolir digeriu na cabeça, não no estômago – Largue a bagagem e segure sua vida.
   Pegou as malas, deu as cosas para casa e foi-se. Pegou o ônibus (qual não se sabe) e sentou-se ao lado de um acento vazio com manchas catarrentas. O café esfriava em suas entranhas, agora todas sorriso.
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Produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Narrativas curtas - Juliano R. Maciel


Vaidade e Ira
Mirou no inimigo. Havia somente uma bala. O sangue fervia. A noite escura. O dia longo. A vida curta. O momento curto.
Dedos tremem. Mãos inteiras tremem. Todo um braço vacila. O horror do assassínio fazia às pernas faltar bases.
Tiro.
O espelho estilhaçou. O inimigo morrera. Cacos, sangue e carne fresca no chão.

O espelho atirara primeiro. O reflexo é o assassino. Mais um alguém está morto.

Inveja e Orgulho
Querer é o mais santo dos atos. Invejar é a mais pura das intenções, a mais alta das virtudes. Invejar é glorificar. Invejar um Deus é também querer ser eterno. Invejar o homem é também querer morrer. Invejar a ideia é morrer sem nunca ter nascido.

Invejo, pois, assim mostro o quanto adoro – adoro Deus, o homem, a ideia. Adoro tanto que glorifico. Mas eu, se pudesse, estaria no lugar de cada um.

Não podendo, invejo.

Gula e Luxúria
Se comer toda a pele, sobrará carne. Para comer a carne, desfaça-se a pele. Dispa-se a pele, dispa-se da pele – devore. Ignore a carne, vista-se em pele – devore.
A diferença é arrotar ou não.

Preguiça
Macunaíma: ...
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Produções provenientes do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Narrativa curta - por Juliana do Amaral



Da natureza feminina

Nesta manhã, o marido acordará e não mais verá a esposa ao lado, na cama. Seguindo seus rastros, descobrirá roupas pelo chão e objetos derrubados na ânsia da libertação. E naquele momento, o homem entenderá que ela cumpriu o seu destino; rendeu-se à mulher selvagem que nela habitava. Não será necessário explicar nada; bastará sentir a lua cheia e o mar revolto, que saúdam a recém-chegada.

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Produção proveniente do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita


sábado, 4 de setembro de 2010

Improvisada fantasia - por Adriana Bernardes

Meus olhos insistem em se abrir, mas não quero acordar ainda. Quero permanecer no mundo paralelo e magnífico que meu inconsciente constrói todas as noites, e onde eu estava até agora, até que meu corpo começasse a me arrancar para a minha medíocre existência.
Sinto minhas pernas serem embaladas por uma manta gelada e úmida, trazida pelo vento em noites como esta, mas continuo tentando não me perder do meu sonho delirante. Não há cobertores ou papelões, nem sequer jornais, mas há corpos entrelaçados e sujos tentando fugir da violência dessa estação.
Os dedos de meus pés e mãos desapareceram, não os sinto mais. E tento, com muito esforço, me manter no mundo aconchegante da minha mente. Lá estou aquecida, faz sol. Há pássaros cantando, risadas de crianças, latidos de cães, buzinas de bicicletas. Ao longe vejo uma majestosa mangueira. Corro até ela desesperada. Meu estômago grita por seu sabor e penso em como poderei me deliciar de todas aquelas frutas num único instante, antes que a dor colossal do inverno me arraste novamente.
Subo na mangueira, pego seu fruto na mão e o admiro com euforia. Há muito tempo eu não me deparava com o sabor. Meus dias acordada tem sido alimentados por coisas que encontro nas lixeiras das ruas, pelos pães velhos que peço ao padeiro da esquina e pelas sopas que recebo vez ou outra, na madrugada, de jovens carregados de ideais e descontentes com suas vidas.
Encosto a pele amarela daquela fruta em meus lábios e tenho a sensação de que apenas o seu perfume poderia me saciar, mas o vácuo em meu estômago me lembra do contrário. Então, com todas as minhas forças eu a despedaço. Sua polpa desliza sobre mim sangrando o meu ataque e me faz desejar que o tempo pare naquele exato momento. Porém, abro os olhos em espasmos de frio e tento me espremer entre aqueles corpos pálidos.
Pergunto-me porque me deixaram aqui. Não sei quem era a minha mãe, nunca a conheci e também não tenho memórias dela, mas ouvi alguém dizer, certa vez, que quando eu nasci - coisa que nem era pra ter acontecido – que eu tinha cara de fome, olhos fundos, pele amarelada. Ela disse que pela minha cara poderia me chamar de desnutrição, não sei o que é que significa essa palavra, mas não parecia um nome de verdade, então, ela me chamou de Maria, que segundo ela, era como se chamava a mãe de Jesus.
Vez em quando um ou outro se lembrava dela por alguma razão e me perguntava se eu sentia a sua falta, mas como eu poderia sentir a falta de alguém de quem nem me lembro?
Já que a mulher de quem eu nasci só me olhara uma única vez na vida e depois desaparecera, Dona Zuleide era a quem eu chamava de mãe. Uma senhora de uns cinqüenta anos que me encontrara aos gritos de fome no beco escuro da Rua Girassol. Por razões óbvias, ela não podia amamentar, então, levou-me até Samira, que há uns quarenta dias também havia dado à luz outro cara de fome.
Samira era uma mulher alta, muito magra, de cabelos curtos e os poucos fios que possuía eram negros e embaraçados. Samira amamentou a mim e a seu rebento até que seu leite se secasse - coisa que não demorou tanto tempo, assim, para acontecer – pois como alguém que mal se alimentava poderia alimentar a alguém? - O fato é que embalada pelo leite de Samira e pelos carinhos maternos de Dona Zuleide eu me criei.
Nosso lar era grande, todas as ruas da cidade à nossa disposição. Andávamos em bandos organizados em busca de alimentos. Mas nos dias frios de inverno era difícil se alimentar, era difícil sobreviver.
Os olhos de escárnio sempre me acompanharam. Meninas em seus vestidos cor-de-rosa rodados e esvoaçantes viam em mim um animal sujo e assustador. Meninos viam algo grotesco do qual sentiam desejo e repulsa.
Esses mesmos olhares eram lançados também a Paulinho e Kadu. Estávamos sempre juntos. De certo modo eles me protegiam e era mais fácil eu conseguir alimentos nas portas das casas do que eles. As pessoas os temiam mais do que a mim. Os dois apareceram no beco num dia chuvoso, e foram acolhidos por Dona Zuleide. Paulinho tinha de 16 anos, Kadu 19, e eu 14.
Sem mais conseguir me manter na mangueira, abro os olhos. É dia, mas um dia escuro e sombrio. Deprimido. Sinto fome. As mangas não estão mais em minhas mãos. Tento acordar Dona Zuleide para começarmos mais uma busca por comida, mas ela não acorda. Ela está maltratada agora pela idade. Não suporta mais. Ela não desperta. Grito por Paulinho e Kadu. Eles vêm. Mas ela não desperta. O frio a consumiu. Desesperados, saímos correndo e pedindo por ajuda. Mas ninguém nos ouviu. Ninguém nos olhou. Ninguém nos percebeu.
Decidimos, então, continuarmos sozinhos, apenas nós três. Todas as noites eu buscava em meus sonhos a vida que eu desejava ter. Nem sempre era possível. Muitas vezes eu tinha pesadelos. Muitas vezes eu sonhava que Dona Zuleide ainda estava ali. Velha, cansada e maternal.
Com o tempo, Paulinho e Kadu foram mudando de alguma forma. De uma forma que eu não sabia explicar. Ás vezes seus olhares para mim eram misteriosos. De algum modo eu não percebia mais neles o afeto de sempre. Algumas noites eles saíam e me deixavam sozinha. A penumbra da noite era assustadora agora e eu temia adormecer sozinha. Ficava esperando por eles, para então fechar meus olhos e buscar pelos meus sonhos.
O verão havia chegado. Os dias eram de sol intenso. Havia muitas folhas nas árvores. Era possível ver mais crianças brincando nas ruas ou nos jardins de suas casas.
Resolvemos ir nos banhar no rio que cortava a cidade. Naquele dia uma senhora, já de idade avançada, nos levou até a sua varanda e nos serviu um delicioso bolo de laranja e uma limonada. Era o que ela tinha pronto e poderia nos oferecer. Não entramos em sua casa. Mas sua varanda era limpa, cheirava a flores e tinha uma rede branca pendurada nos pilares. Depois de satisfeitos, ela nos deu alguns trocados, que Kadu agarrou e colocou no bolso de sua calça encardida. Então, felizes e momentaneamente saciados, seguimos para o rio.
Eu entrei primeiro e fiquei brincando com meus cabelos longos que deslizavam sobre a água. Paulinho e Kadu estavam sentados à margem e me olhavam. Eu gritei para que entrassem, mas eles só acenaram com a cabeça e continuaram a me olhar trocando olhares entre si e dizendo algo que eu não podia ouvir de onde estava. Então, eu resolvi ir de encontro a eles.
Deitei-me sobre a margem e deixei que o sol me aquecesse. Fechei os olhos. Quando os abri os dois estavam ao meu lado. Não sei descrever exatamente o que senti, mas certamente era medo. Senti vontade de gritar e tentei fugir, mas minhas pernas ficaram moles. Eu não conseguia gritar, minha voz não saia. E por instinto eu imaginei de alguma forma o que iria acontecer. Eles não eram mais os dois meninos que me protegiam. Então, Paulinho me agarrou pelos braços, enquanto Kadu arrancava minhas roupas. Com força, jogaram-me no chão. Seus olhos brilhavam e havia desespero neles. Fechei os olhos novamente. Quando os abri mais uma vez, estava em um jardim. Havia muitas flores, muitas árvores, alguns brinquedos. Eu usava um vestido branco, cintado com uma fita de setim. Então ouço uma voz: “Venha minha filha, venha logo! Vamos fazer um piquenique”.
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Produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Até o fim - Adriana Bernardes



Não há nada de muito importante que eu possa lhes contar sobre a minha vida. Não tive grandes feitos. Não deixei nenhum legado relevante. Fui apenas mais um número para o governo. Também nunca me interessei verdadeiramente por nada. Não me casei, tive poucos e insignificantes relacionamentos amorosos. Digamos que as mulheres nunca viram nada de muito promissor em minha pessoa, e eu, por outro lado, não desejava me preocupar com os assuntos rotineiros de uma relação e os destemperos femininos, ou mesmo com aquela rotina “todo dia ela acorda e faz tudo igual...”
O que sempre me acompanhou nesses anos todos – e confesso que somente agora, e nem sei por que, me dei conta disso – foi a música. Penso agora que de algum modo ela sempre esteve presente. Muita coisa me faltou durante a minha vida, desde a minha infância, “como fui levando não sei explicar... fui assim levando...”. Parece até que “quando eu nasci veio um anjo safado, o chato do querubim, e decretou que eu estava predestinado a ser errado assim”.
Mas eu nunca fiz nada de mal, não, às pessoas. Também não fiz nada de bem, mas apenas vivi. Acomodei-me com o pão de cada dia e fui seguindo.
Minha casa sempre foi muito simples. Vivo nela desde que nasci. Antes morava nela eu, mais três irmãos e meus pais. Dos três irmãos, um morreu, um foi preso e outro casou e virou pastor da igreja. Meu pai, que era mesmo chegado numa branquinha e vivia metido com gente que não prestava, num dia que não me lembro qual “amou daquela vez como se fosse a última, beijou sua mulher como se fosse a última, a cada filho seu como se fosse o único e atravessou a rua com seu passo tímido”. Quando do ocorrido, eu estava com treze anos e, desde então, nunca mais o vi. Minha mãe morreu alguns anos depois. Acho que de tristeza. E eu fui criado pelos meus irmãos.
Nossa casa era de madeira. Possuía uma cozinha e dois quartos. O chão da cozinha era de chão batido. O do quarto uma mistura de vários pisos que foram ganhos de alguns vizinhos. O banheiro era do lado de fora da casa. Naquela época chamávamos de mictório. Era de madeira e ficava há alguns metros de nossa casa. Num dos quartos dormíamos eu e meus três irmãos, todos juntos em cima de um colchão de casal que encontramos na rua para ser jogado fora, no outro meus pais. Desde que todos se foram eu estou sozinho aqui. Nada mudou na casa. Nada mudou em mim.
Mas o que me fez voltar a esses tempos de outrora foi a lembrança de que uma coisa sempre havia nesta casa enquanto todos ainda caminhavam por aqui, a música. E ainda hoje em dia ela se faz presente.
Meu pai chegava à tarde da mecânica em que trabalhava, servia-se de uns goles, deixando a marca de graxa de suas mãos no copo e botava sua vitrola para cantar. Então seguíamos noite adentro ouvindo suas canções favoritas. Não que ele conhecesse outras canções, aquelas eram favoritas porque eram as únicas que ele conhecia. Ele ganhou o álbum de presente de aniversário do tio Henrique e gostou tanto que todos os dias em nossa casa eram embalados por aquele “LP”. O nome que aparecia na capa do disco era Chico Buarque.
Hoje, aqui, lembrando desses tempos, me pego a pensar que meu velho pai alcoólatra tinha muito bom gosto. Mas acho que ele nunca soube disso. Que ouvia mesmo porque lhe agradava aos ouvidos.
Durante um tempo eu fiz parte do coro da igreja, mas como eu não podia cantar as canções que eu gostava e somente as que me eram impostas, logo desisti da atividade.
Na frente de nossa casa havia um vizinho, Senhor Francisco, que tinha um velho violão. Nos finais de semana, que era quando era possível vê-lo em sua varanda, ele tocava aquele violão durante horas seguidas. Nos outros dias não era possível vê-lo porque ele estava sempre trabalhando. Ele era caminhoneiro e durante toda a semana andava pelas estradas. A casa do Senhor Francisco era bem diferente da nossa. Era de tijolos, tinha uma grande varanda, um jardim com flores que sua esposa vivia a cuidar. Sempre que ele se sentava para tocar seu violão num banquinho de madeira feito por ele mesmo, seus filhos, que eram dois, um casal, e sua esposa, sentavam-se em seu redor para ouvi-lo e cantar com ele. Eles cantavam diversas canções, muitas eu nem conhecia, mas eu gostava. Algumas eram da igreja, essas eu conhecia e cantava baixinho com eles, como que me infiltrando naquele momento, assistindo-os da minha janela, escondido para que não me vissem. Eu sentia que havia algo naquela família que não havia na minha. Uma troca de afeto e de cumplicidade em seus olhos que não havia na minha.
Como eu ia dizendo, depois que todos se foram, eu fiquei aqui sozinho. Eu sempre convivi bem com esta solidão. Cozinhava quando sentia fome. Bebia quando sentia falta de algo que eu não sabia o que era. Não como o meu pai bebia, mas bebia. Ia à casa de Dona Consuelo quando desejava ter uma mulher.
Mas o fato é que agora, diante desta face enrugada que vejo neste espelho quebrado, me pego a pensar sobre o que fiz nessa minha vida.
“Você que inventou a tristeza, ora tenha a fineza de “desinventar””, porque não me agrada em nada essa angústia que me toma. Escolhi caminhar sozinho e decido continuar assim. Coloco a velha vitrola de meu pai para tocar. Todas essas lembranças que lhes contei me fizeram chegar a uma conclusão. Nada foi tão insignificante assim. Nada foi tão sem sentido. Há uma coisa que sempre esteve presente, que me agradava e que me dava e dá forças ou ânimo, que seja, para continuar, a música. Houve, pois, algo de importante sim nessa minha vida.


Nome e autoria das canções citadas no texto:

Até o fim – Chico Buarque – 1978
Construção – Chico Buarque – 1978
Apesar de você – Chico Buarque - 1978
Cotidiano – Chico Buarque – 1971
O meu guri – Chico Buarque – 1981
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Produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita.