terça-feira, 30 de novembro de 2010

Todo começo tem seu fim...

... e este blog nasceu com uma data para terminar. 

E esta data chegou.

Os encontros do Círculo de Leitura e de Produção Escrita se encerraram no dia 16 de outubro - leia aqui e aqui sobre o último encontro.

O blog se manteve até agora, final de novembro. Para novas produções escritas dos participantes. E assim estamos. Com muitas escritas de contos, que podem ser lidas aqui. E todas as leituras que realizamos durante os dez encontros podem ser lidas aqui

Na barra lateral do blog consta o propósito desta engenhosidade de interação virtual, que existiu enquanto o grupo existiu. 

O blog continuará no ar. Apenas não mais será atualizado. 

Comentários continuarão sendo bem-vindos. Assim como as leituras silenciosas de todos.

Como mediador do Círculo de Leitura e de Produção Escrita, registro meu agradecimento a todos os que se dispuseram a participar dos encontros, a todos os que se envolveram com as leituras e com as escritas, e a todos os que acompanhar nossas produções escritas neste espaço virtual. O meu sincero muito obrigado, porque se não fosse por todos vocês esta pesquisa e este blog não existiriam. 

Os resultados da pesquisa e essas partes "chatas" academicamente falando não cabem aqui. E é melhor que seja assim. Um blog como este não mereceria a rigidez de um relatório ou de um artigo de pesquisa acadêmica.

Que possamos encontrar outros projetos assim aí pela blogsfera. E que possamos divulgá-los, com certeza.

Ítalo Puccini, pesquisador-mediador. 

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Escrever como o debate intermitentemente esquizofrênico entre o eu-lírico e o eu-louco

por Juliano R. Maciel

Tem gente que não regula bem. Há doidos. Há loucos de pedra. Normais são muitos, reconheço. Alegro-me, contudo, ao saber que posso contar com os doidos para atazanar a paz pouco merecida da gente que fecha os olhos para o que não presta (doravante, normais).
Esses doidos são os tais que não funcionam direito como seres humanos. Não gostam de nada, às vezes, nem de não gostar de coisa alguma. Em contrapartida, há aqueles doidos que gostam de tudo, que não vivem sem nada, que gostam sobretudo de gostar das coisas que gostam. Constituo-me, assim, como doido.
Mas minha doideira é ambivalente, o que me permite enumerar enfim o terceiro tipo de doido da tríade insana que postulo: diferente e igual aos que não gostam de nada, igual e diferente aos que gostam de tudo – há os doidos que gostam e desgostam das coisas todas, seja alternadamente ou ao mesmo tempo.
Acompanhe, por exemplos, minha linha de raciocínio: seria Amoz Oz capaz de gostar de todas as coisas? E Cora Coralina, de desgostá-las? Será que Cecília Meirelles demonstrou desdém? Em que Adélia Prado cuspia em cima? O que Monteiro Lobato gostava de elogiar? O que Nelson Rodrigues amava acima de tudo?


Esses doidos são, antes de tudo, escritores. Não dos que exercitam o ato libidinosamente arriscado de rabiscar poemas em um caderno escolar ou mantém o hábito condenável de compor esquetes nas últimas páginas que possuem, mas daquele arquétipo do cientista maluco (sendo eles mesmos grandes mantenedores de arquétipos).

Meu eu-louco ojeriza:
“O que é a escrita, contudo, se não um espaço de testes? Grandes testes. Escrever é uma ciência, não é uma arte. Escritores são cientistas, gente chata e banal dada a grandes acontecimentos. Fazem alarde de ocasiões. Fazem pouco do que é visceral. Criticam. Escrevem A Montanha Mágica. Mantém fantasias secretas com Madame Bovary e querem muito outro fim sangrento para Os Miseráveis. Eles são cientistas, sim, pelo fato de recriarem o que já foi criado e recriado centenas de vezes, ou cientistas pelo fato de testarem em seus laboratórios misturas que levam a resultados ainda indizíveis.
Sim, pois o que são livros senão laboratórios? Capítulos são tubos de ensaio onde se misturam componentes históricos, sociais, humanos, divinos e diabólicos, despejados todos no grande cadinho da obra prima, uma redoma de vidro e tinta de onde se pode observar muito confortavelmente, como leitor, o resultado de testes não pensados. E se aqueles personagens existissem? E se aquelas guerras, celeumas, curas, milagres, mundos, todos tivessem existido? O que seríamos todos nós hoje? O que aconteceria se o que é escrito fosse um relato da realidade inescapável? Bem, isso é a escrita: um local seguro onde cientistas malucos fazem testes, onde componentes instáveis são expostos a reagentes explosivos, onde podemos ter uma noção do que seríamos e do que faríamos se o “E se...” pudesse sempre ser escolhido, avaliado e, quando necessário, apagado.
Na escrita podemos fazer testes, tentar supor como é a natureza dos homens e de suas ideias, como se resolvem conflitos criados somente naquele laboratório de ratos que é o livro.”

Meu eu-lírico conjectura (não sem antes falar: “Zangaralhão!”):
“O que é a escrita, digo, se não uma brecha? Uma fenda entre mundos, um universo à parte, um parênteses imenso aberto por sabe-se lá que vontade? Soberbas vontades. Escrever é uma arte. É escapulir. É a ideia pulando para o papel e o escritor pulando para muito além. Escritores são escapistas, sem-vergonhas, levianos. Imaginam na hora de acordar e dormem na hora de realizar. Soneteiam nas filas dos bancos. Compõe no banheiro. Matam e ressuscitam personagens no passeio pela praça. Escrevem Mrs. Dalloway. Imaginam a luxúria da Senhora. Eparrei Oyá com O Sumiço da Santa. Se fizessem um auto-retrato no barro, modelariam só metade. Ou bateriam só metade do mármore. Ou pintariam só metade da tela. A outra metade está sempre inacabada, sempre precisando dos cortes finais, sempre precisando de um retoque, um reparo. Nunca estão acabados. Arte longa, vida breve, deixam de viver se acabando.
Claro, pois como ser um ser completo se o que se faz nunca está pronto? Como pode separar-se a obra do obreiro, remover de ambos a marca do inacabado? Não se escreve para os outros, escreve-se para si. Escrever não tem função social, mas é tão útil quanto o que é útil. Lê-se porque os seres humanos todos são bisbilhoteiros e querem mexericar a parte inacabada de certos alguns.
Se finda a obra, contudo, termina também a vida do obreiro. Escritores vivem depois de terminar um livro ou soneto porque não aguentam mais olhá-lo, querem livrar-se dele, afastar-se para sempre, parar de tentar acabá-lo. A perfeição, afinal, é o sinônimo da morte. Da hora de poder murchar.”

Concluo, enfim, que doidos por doidos o mundo seria pior sem livros, sem escrita, sem leitura. Laboratórios ou pedaços da alma, livros são espaços muito racionais ou muito mágicos para serem devidamente apreciados por qualquer ser humano. Nem quem escreve tem consciência do que realmente está fazendo, não entende com o que está lidando.
Mas também, para quê?

Zangaralhão!
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Produção proveniente do décimo encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O começo que nasce para morrer - por Ítalo Puccini

Se um fim é uma possibilidade de começo, um começo deve ser também uma possibilidade de começo. De recomeço, talvez. Muito possivelmente. A tendência de um começo é a morte instantânea. Ao mesmo tempo que o renascer. Nenhum recomeço advém do nada. Ao contrário de um começo, que por vezes - talvez nunca? - faz deste (im)possível sua matéria bruta.
O começo de um texto é aquilo que mais renegamos. É a substância que brotamos de nós para ser jogada fora. É nosso apêndice. Nascido para morrer.
E mesmo aquele começo - de texto ou qualquer outro começo - que se apresenta a todos como definitivo, aquele começo que ficou definido como o começo de algo, está entregue à mudança constante. Não à morte, mas à mudança. Pois ele nem sempre será lido como o começo que se propôs a ser. Por que não o lermos como uma possibilidade de final, então? Será daí que todo fim é um começo?, uma vez que cada nova leitura pode ser a morte e o enterro da leitura anterior, sugada antes de não mais existir.
O começo de livro que até hoje mais me marca é este: "Na primavera de 1998, Bluma Lennon comprou numa livraria do Soho um velho exemplar dos Poemas de Emily Dickinson, e ao chegar ao segundo poema, na primeira esquina, foi atropelada por um automóvel". É do livro "A casa de papel", do argentino Carlos Maria Domínguez. Por que este começo? Porque a mim toca profundamente. Porque eu, enquanto leitor que sou, prendi a respiração - com o livro em mãos - ao ler este trecho, e me detive nele por muito tempo, para depois ir adiante no romance. Um bom começo também pode ser um caminho para o abismo da decepção.
O começo como morte é a oportunidade de não estranharmos muito o novo começo, o recomeço. E de não sentirmos muito aquele que não mais existe, porque nada nem ninguém vem para substituir algo ou alguém, mas para acrescentar, para existir a partir daquilo/daquele que não mais.

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Produção proveniente do décimo encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Começo de um conto, por Ana Paula Kinas Tavares

   Eu que nunca lembro o começo de um filme ou de um livro, encanto-me ao adivinhar uma canção em seus primeiros segundos. Queria começar assim todos meus contos, como os primeiros acordes de canções inesquecíveis. Gostaria que nem todo leitor adivinhasse o que viria, mas se encantasse e recordasse. Não quero a monotonia do “era uma vez”, nem distanciar o leitor do conto narrando “numa terra não muito distante”. Quero a proximidade com a vida, um sujeito que aparece do nada, encontra uma mulher e desenvolve uma conversa. Ninguém explica quem são as pessoas que passam por você na rua. Quando você conhece alguém interessante não vai logo dizendo seu signo ou seus defeitos, não conta como seus pais se conheceram ou a origem do seu nome. Meus personagens não precisam ter suas vidas expressamente descritas, o passado deixo o leitor imaginar, quero o presente, a cena que nossos olhos apreciarão.
   Eu sugiro a cor lilás na camisa do protagonista e o leitor vai compondo sua personalidade, seu jeito desinibido e seu caminhar imponente. Eu dito uma fala e é o leitor quem sente a voz grave do sujeito. Eu escrevo sobre o olhar atento da mocinha, e permito ao leitor sentir seu pulso acelerado ou a canção que toca no bar. Mas, eu não disse que estavam num bar. E esse é o jogo, se estão sentados, se bebem, o leitor vai criando o cenário, que pode ou não ser futuramente destruído (ao ser por mim descrito). Se eles saem dali, a história vai se fazendo, e o começo já não é tão importante, mas sempre lembramos aquele primeiro olhar. Como a capa de um livro ou o primeiro beijo, é ele quem nos prende, mesmo que não nos diga muito, não se explique ou, seja passageiro.
   Eu abro mão dos fatos para falar dos sentimentos, e mesmo o leitor mais “superficial” imagina um beijo quando apenas digo que “se tocaram, na alma, nos corpos que estavam tão pertos”. Sente o primeiro toque dos lábios, a mão do protagonista acariciando o rosto dela e por aí vai. Se continuo a poetizar um leitor envolvido já sente o cheiro de prazer, o gemido e o gozo. Mas, eles ainda estão num bar, é só uma conversa envolvente num primeiro encontro sendo descrita. Isso escrito, isso para as palavras. Quem sente já viveu dias, encontros, e está no conforto do ninho de amor. Ainda que as personagens nem tenham sentido os sinos românticos ou suspirado o encontro.
O meu propósito de começo é instigar o leitor, convidá-lo a criar comigo. Não costumo seguir Machado falando com o leitor, mas acredito que ele me entende. Até me segue. Na subjetividade das primeiras descrições ou na falta de informação, ele vai preenchendo as lacunas. Não segue um padrão ou um roteiro, cada leitura terá uma direção. Esta, geralmente, guiada pelas próprias experiências além do mundo literário. Um amor do passado ou uma professora do primário pode servir de inspiração ao leitor, assim meu protagonista pode sonhar em ser jogador de futebol e sua futura namorada ser pedagoga. E eu, que nem pensei numa profissão, viro apenas uma mediadora desse encontro entre leitor e personagens. 

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Produção proveniente do décimo encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

domingo, 17 de outubro de 2010

Décimo - e último - círculo: começos


O título desta postagem, que aponta para uma possível contradição entre duas palavras de sentidos opostos - último e começo - tem um porquê. Realizamos, de fato, o décimo e último encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita. Um encontro em que conversamos sobre o filme assistido no encontro anterior (ver post anterior), e também fizemos a leitura da introdução e da conclusão do livro "E a história começa", do escritor israelense Amós Oz. E foi a leitura destes dois textos de Oz que leva à contradição do título: o último encontro, em que muito conversamos sobre começos de histórias.

Após, então, a conversa sobre o filme "Narradores de Javé", iniciamos a leitura dos dois textos do livro do Amós Oz. No primeiro texto, que é a introdução do livro, o autor discorre sobre a dificuldade que é iniciar uma história. Ele admite sentir inveja de seu pai, que escrevia livros acadêmicos, e que, por isso, sempre quando ia escrever algo, sentava-se rodeado de livros e, a partir deles, produzia. A inveja sinalizada por Oz é a de que para ele, escritor de histórias, e não de textos acadêmicos, sentar para escrever algo era "encarar uma única e zombeteira página em branco no meio de uma mesa árida, como uma cratera na face da lua. Somente eu e o vazio e desespero. Experimente alguma coisa a partir de absolutamente nada". E este trecho nos levou a pensarmos nesta "escrita a partir do nada". Até que ponto ela de fato existe e assim acontece? Até que ponto produzimos de um nada? Que nada é esse?

Segundo Oz, "Uma página em branco é, na verdade, uma parede caiada sem porta ou janela. Começar a contar uma história é como passar uma cantada numa pessoa inteiramente desconhecida, num restaurante". E no restante do seu texto o autor israelense vai apresentando ao leitor inúmeras possibilidades de se começar uma história envolvendo alguns personagens definidos por ele. Mas e desde quando teriam que ser aqueles personagens? Como definir sobre qual personagem iremos contar algo? E o que deste personagem será contado ou escondido do leitor. E mais, de que forma poderemos contar esta(s) vida(s)?

Um texto que leva o leitor a inúmeras perguntas sobre este processo de começar uma história. Um texto que pode ser marcado por uma frase de apenas três palavras, que praticamente divide o texto ao meio: "É difícil começar".

Talvez por isso a proposta de escrita final para o grupo transita por isto: escrever sobre como é escrever o início de uma história. Escritas que vão apresentar um tanto de metalinguagem. Que histórias com inícios de histórias serão postadas neste blog, como forma de encerrar o trabalho desenvolvido durante estes oito meses de encontros para leituras e escritas?

O texto de conclusão do livro de Oz aponta para o resgate da leitura como prazer ocioso para o leitor: "os prazeres da leitura, como outros prazeres, devem ser consumidos em pequenos goles". E é com dois parágrafos deste texto que encerro estes escritos sobre os encontros deste grupo de leitura, destes leitores em formação que nos dispusemos a ser.

"O jogo da leitura requer que você, leitor, assuma uma parte ativa, traga o campo de sua própria experiência de vida e sua própria inocência, bem como cuidado e astúcia. Os contratos iniciais são às vezes esconde-esconde e às vezes uma espécie de jogo tipo Genius e às vezes mais parecidos com um jogo de xadrez. Ou pôquer. Ou palavras cruzadas. Ou uma travessura. Ou um convite para um labirinto. Ou um convite para dançar. Ou um galanteio zombeteiro que promete mas não entrega, ou entrega os itens errados, ou entrega o que jamais prometeu ou entrega apenas uma promessa.
E em última análise, como com qualquer contrato, se você não ler as letras miúdas, pode ser ludibriado; mas às vezes pode ser ludibriado precisamente por se atolar nas letras miúdas e não conseguir ver a floresta, de tanto olhar as árvores".

Ítalo Puccini, pesquisador mediador. 

Décimo - e último - círculo: conversa sobre o filme


No primeiro momento do último encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita fizemos uma conversa sobre o filme "Narradores de Javé", ao qual assistimos no encontro anterior. Esta conversa transitou pela trama, pela importância que adquirem a memória e a oralidade na história, e pelos caminhos que o filme nos leva à literatura. Tudo acontece, no filme, a partir do drama que enfrentam os moradores de Javé: a instalação de uma usina elétrica no vilarejo vai levá-lo a não mais existir no mapa. E a solução que lhes resta é uma só: registrar por escrito o vilarejo, tornando-o de valor histórico e científico, conforme falam. É preciso contar a história de Indalécio, o fundador de Javé.

Eis, então, o momento em que surge o personagem Antonio Biá, o salvador dos habitantes de Javé, aquele que em anos anteriores fora expulso de lá pelo motivo que agora o trazia de volta: a escrita de histórias. Biá é chamado para escrever a história de Javé, por ser o único ali que sabe escrever (Biá trabalhava na agência dos correios em Javé. Como ninguém fazia uso da escrita e da leitura, ele passou a inventar histórias dos moradores da localidade, como forma de tornar a agência movimentada, e assegurar seu emprego. Justamente por isto foi expulso pelos moradores quando descobriram o que ele inventava). 

No momento em que Biá passa a ouvir as histórias dos moradores de Javé é que passamos nós, telespectadores, a percebermos como a memória oral de cada um privilegia aspectos e detalhes que ninguém conhece, e que jamais serão registrados como de fato aconteceram. Passamos a perceber o quanto a escrita não dá conta daquilo que é da oralidade. E também o quanto toda escrita fica marcada por aquele que a produz, o que nos leva a pensarmos na isenção do historiador no momento de registrar uma história.

Biá vai ouvindo as versões de cada habitante de Javé. Cada um "puxando a sardinha" para o seu lado, apresentando algum detalhe que antes não havia (a imagem acima é marcante nisto. É o momento da história em que dois irmãos discutem muito querendo fazer valer cada um a sua versão para os fatos). Como já dizem os ditados, quem conta um conto, aumenta um ponto. E existem sempre três verdades: a minha, a sua, e a que de fato existe. E Biá deixava claro aos moradores: Uma coisa é o fato acontecido. Outra, o fato escrito. E as verdades produzidas pelos moradores do vilarejo são compostas de memória. De uma memória mítica, onde se encontra com a fala. Uma memória que é feita de fala, que é produzida pela narração. 

Diante disso, algumas pontes que podemos fazer com a literatura fazem referência a dois aspectos textuais apresentados pelo teórico Mikhail Bakhtin, a polifonia (as várias vozes de um discurso, uma vez que a coexistência de inúmeros narradores, narrativas e formas de narração compõem uma heterogeneidade discursiva, que é o que observamos no filme, nas várias narrativas que o compõem) e o dialogismo, a partir de uma citação do próprio Bakhtin: "Tudo se reduz ao diálogo. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina, nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida". 

Além disso, nossa conversa sobre o filme levou às várias leituras que podem e devem ser feitas de uma mesma história. A história de Javé é na verdade as histórias de Javé. A história de cada morador é a leitura que cada um deles faz da localidade em que vivem, o que prova que não existe uma só maneira de se ler algo, e sim maneiras de se ler. 

Ítalo Puccini, pesquisador mediador. 

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Narrativa curta - por Adriana Bernardes

A mão

Posso ter muitas habilidades.
Posso ser a mão que acarinha,
A mão que alimenta,
A mão que dá adeus,
A mão que se envolve no abraço,
A mão que limpa suas lágrimas,
A mão que mata.
Você é quem determina para que eu serei usada.




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Produção proveniente do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

sábado, 25 de setembro de 2010

Nono círculo: Narradores de Javé


Neste nono encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita, a proposta de leitura foi diferente. Ao invés de lermos contos, assistimos a um filme que oferece ao telespectador/leitor a possibilidade de conhecer a narração da história de um povoado. Ou as várias narrações de várias histórias de um povoado. Um caminho para pensarmos as diferentes leituras produzidas por cada leitor junto às histórias que lemos.

Não desenvolverei aqui, ainda, um escrito sobre o filme. Também porque não conversamos hoje sobre o mesmo.

Fica, sim, o convite para que todos possam assisti-lo, e então, no último encontro - e a partir dele, com uma escrita neste espaço - trocarmos as leituras que dele fizemos. 

Ítalo Puccini, pesquisador mediador. 

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Narrativa curta - por Adriana Bernardes


Tempo de deixar o tempo passar

O fogão a lenha estava aceso aquecendo toda a casa.
A chaleira chiava tentando chamar sua atenção.
Sob os pés uma sandália de tecido.
Ela mantinha seu ritmo na cadeira de balanço.
Não havia pressa, apenas tranquilidade e harmonia. 

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Produção proveniente do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Narrativas curtas - por Ítalo Puccini


1. sem título
no meio do rio havia uma pedra.
nela,
bateu a cabeça. 

2. sem título 
foi um rio que passou na vida dela e levou a cama, o sofá, o tapete, a casa e o filho.

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Produções provenientes do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Oitavo círculo: contraponto

Na noite de hoje, terça-feira, encontramos para o oitavo encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita, na sala do Lappe, das 18h às 19h. Estivemos presentes em sete pessoas para este encontro que encaminha o círculo para o seu final.

A proposta de leitura foi de dois autores de épocas e estilos de textos bastante diferentes: Marcelino Freire e Carlos Drummond de Andrade.


Iniciamos o encontro lendo alguns contos do livro "Rasif", de Marcelino Freire. Contos, em sua maioria curtos, de duas, três páginas, que primam por um trabalho riquíssimo de pontuação. As frases são muito curtas. Entrecortadas. Contos muito pausados, que pedem uma forma de leitura bastante diferente. É preciso lê-los de maneira bastante dinâmica, bastante ritmada, sob o risco de perder a potência sugerida pelos contos. E foi deste modo que fizemos. Cada um lia até um ponto final. E os contos eram compostos por frases realmente curtas, como é possível observar no trecho do conto "Chá": "Piorou. Hã? Piorou. Hum? Pirou, pirou. Xaropou. Não diz coisa. Com coisa. A bolacha. Nada com nada. Coitado! Hã? Coitado! Fulminante. Deu derrame. A bolacha. Passa. Ficou caduquinho". 

"Rasif" é um livro muito bonito, esteticamente falando. Edição da record, 2008, de capa dura, e com gravuras muito bem feitas por Manu Maltez (já é possível perceber pela gravura da capa). Não é um livro de se ler só pelas histórias que apresenta. É um livro de se sentir, de tocar e tocar, e correr as mãos por todos os espaços dele.


A explicação do nome do livro vem logo nas primeiras páginas, depois da ficha de catalogação. Diz assim: “recife. s.m. um ou mais rochedos no mar, à flor da água, ou perto da costa. do árabe rasif, terreno pavimentado com lajes, estrada pavimentada com rochedos. pernambuco. s.m. do tupi-guaraniparanã-puca, que significa ‘onde o mar se arrebenta’”.



“Rasif” é um livro de contos com uma linguagem bem trabalhada, cuidadosa, transgressora. São de contos que escancaram a vida em sua forma mais pura e cruel. Assim mesmo, contraditoriamente: purismo e crueldade. Que é a vida. Em “Rasif”, as personagens de Marcelino Freire não querem saber de oferendas falsas a falsos deuses/mitos, não querem saber da paz, “essa coisa de rico, que é bonita na televisão, e só, que causa a dor, e que não deixa”. Elas querem saber dos homens-bomba e de seus amores impossíveis, querem saber do que há de bonito no Afeganistão, em Bagdá, em mesquitas e na “Al-Qaida”. Querem saber dos revólveres em mãos de crianças, e ainda trazidos pelo papai noel. E, como não poderia deixar de ser, as personagens dos contos desse livro buscam o amor, acima de tudo o amor, “amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa. Como todo grande amor. A sua marca”. O que não significa que o encontram. Muito pelo contrário. Afinal, o amor também mata. E pode vir mascarado em um buquê de flores.



Após a leitura de alguns contos de "Rasif", lemos um conto do livro "Contos de aprendiz", de Carlos Drummond de Andrade. Um conto intitulado "Flor, telefone, moça", com uma proposta de escrita bastante diferente da presente nos contos de Freire, e muito próxima da presente nos contos que havíamos lido no quinto encontro, do Caio Fernando Abreu, em "Morangos Mofados". Um conto bastante descritivo, com temática também densa, que se utiliza do diálogo da forma como a aprendemos na escola, a forma clássica, com "outra linha, parágrafo, travessão". E também deste livro do Drummond ficou para ser livro o conto "Um escrito nasce e morre", um conto que explora muito bem a metalinguagem na literatura, quando no personagem podemos encontrar o autor do conto se descrevendo através da escrita. Encontramos um personagem que sinaliza o seu nascimento no momento em que começou a escrever, passando pelo seu desenvolvimento, com as atribuições que a escrita impeliu àquele personagem, chegando ao final, o momento em que o personagem “morre”, ou seja, deixa de escrever.

Há, ainda, em "Contos de aprendiz", uma epígrafe muito bonita que apresenta uma relação de um livro - desconhecido para nós - com uma história, com qualquer história que ele leia: "Nas histórias que ele nos contava, quando meninos, o que me prendia a atenção, a ponto de fascinar-me, não era o enredo, o desfecho, a moralidade; e sim um aspecto particular da narrativa, a resposta de uma personagem, o mistério de um incidente, a cor de um chapéu...". 

Levei, ainda, um pequeno trecho do livro "A estrada", do norte-americano Cormac McCarthy, apenas para que os participantes tomassem conhecimento do diálogo estabelecido entre pai e filho numa das cenas do romance. Mais sobre este livro pode ser lido aqui, inclusive o diálogo fotocopiado ao grupo.

Ficou, então, como proposta de escrita, a continuidade das anteriores. Construção de contos descritivos e/ou de narrativas curtas, explorando os recursos de diálogos, de pontuação, de ritmos de leitura que todo texto deve propor ao leitor. 

Ítalo Puccini, pesquisador mediador. 

sábado, 11 de setembro de 2010

Malas - por Juliano R. Maciel

   Um onisciente me contou que aquele homem carregava algumas malas consigo – nem poucas, nem muitas, mas pesadas – e as segurava em ambas as mãos enquanto adentrava no longo veículo automotivo onde sentamo-nos, almas que somos, como livros dispostos nas prateleiras. Esse veículo, vulgo ônibus, movia-se com certa ligeireza a cada volta de suas rodas.
   O fato é que um sujeito de preto entrara quase junto daquele homem. O outro fato é que ambos entraram no ônibus no último ponto antes daquela curva bem fechada. O último fato antes do fato derradeiro é que o motorista, pensando morte e vida de Jesus Cristo, não diminuiu a velocidade e todos os passageiros em pé cambalearam muito.
Mais cambaleou o homem das malas, pesadas que estavam, fazendo-o vacilar como bêbado na corda bamba. A mochila nas costas não ajudou. Ia estabacar-se de certo no chão, fazendo as narinas cheirarem o pó pisado de muitos solados no chão do coletivo. Mas no momento que todos os passageiros caíram de lado nos bancos ou agarraram-se às travas para sua segurança, o tal sujeito de preto manteve-se ereto e avançando como carvalho que entre juncos despreza o vendaval. Ele segurou o homem das malas e livrou-se de queda certa dizendo-lhe, enquanto o colocava de volta na verticalidade que é do homem: “da próxima vez, largue a bagagem e fique com sua vida.” E evadiu-se para um último acento vago do lado da velha tossideira.
   Alívio e lombo cansados (das chicotadas do relógio) fizeram o homem das malas chegar célere, sem se perceber, no espaço geométrico ocupado por sem-razões (doravante, casa) e tomar um trago de café frio como cuspe da morte sobre a mesa da cozinha. Ali estava a esposa, jovem também.
   “Aventura incrível no ônibus da rodoviária pra cá.”
   “Traste imprestável. Você demora sempre. Conseguiu fechar negócios? Somos pobres?”
   E diante da aspereza de uma pele tão macia o homem fez murchar seu sorriso de parca excitação menestrélica ao engolir o que ouvira no ônibus. Fez bem, pois ao engolir digeriu na cabeça, não no estômago – Largue a bagagem e segure sua vida.
   Pegou as malas, deu as cosas para casa e foi-se. Pegou o ônibus (qual não se sabe) e sentou-se ao lado de um acento vazio com manchas catarrentas. O café esfriava em suas entranhas, agora todas sorriso.
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Produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Narrativas curtas - Juliano R. Maciel


Vaidade e Ira
Mirou no inimigo. Havia somente uma bala. O sangue fervia. A noite escura. O dia longo. A vida curta. O momento curto.
Dedos tremem. Mãos inteiras tremem. Todo um braço vacila. O horror do assassínio fazia às pernas faltar bases.
Tiro.
O espelho estilhaçou. O inimigo morrera. Cacos, sangue e carne fresca no chão.

O espelho atirara primeiro. O reflexo é o assassino. Mais um alguém está morto.

Inveja e Orgulho
Querer é o mais santo dos atos. Invejar é a mais pura das intenções, a mais alta das virtudes. Invejar é glorificar. Invejar um Deus é também querer ser eterno. Invejar o homem é também querer morrer. Invejar a ideia é morrer sem nunca ter nascido.

Invejo, pois, assim mostro o quanto adoro – adoro Deus, o homem, a ideia. Adoro tanto que glorifico. Mas eu, se pudesse, estaria no lugar de cada um.

Não podendo, invejo.

Gula e Luxúria
Se comer toda a pele, sobrará carne. Para comer a carne, desfaça-se a pele. Dispa-se a pele, dispa-se da pele – devore. Ignore a carne, vista-se em pele – devore.
A diferença é arrotar ou não.

Preguiça
Macunaíma: ...
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Produções provenientes do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Narrativa curta - por Juliana do Amaral



Da natureza feminina

Nesta manhã, o marido acordará e não mais verá a esposa ao lado, na cama. Seguindo seus rastros, descobrirá roupas pelo chão e objetos derrubados na ânsia da libertação. E naquele momento, o homem entenderá que ela cumpriu o seu destino; rendeu-se à mulher selvagem que nela habitava. Não será necessário explicar nada; bastará sentir a lua cheia e o mar revolto, que saúdam a recém-chegada.

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Produção proveniente do sexto e do sétimo encontros do Círculo de Leitura e Produção Escrita


sábado, 4 de setembro de 2010

Improvisada fantasia - por Adriana Bernardes

Meus olhos insistem em se abrir, mas não quero acordar ainda. Quero permanecer no mundo paralelo e magnífico que meu inconsciente constrói todas as noites, e onde eu estava até agora, até que meu corpo começasse a me arrancar para a minha medíocre existência.
Sinto minhas pernas serem embaladas por uma manta gelada e úmida, trazida pelo vento em noites como esta, mas continuo tentando não me perder do meu sonho delirante. Não há cobertores ou papelões, nem sequer jornais, mas há corpos entrelaçados e sujos tentando fugir da violência dessa estação.
Os dedos de meus pés e mãos desapareceram, não os sinto mais. E tento, com muito esforço, me manter no mundo aconchegante da minha mente. Lá estou aquecida, faz sol. Há pássaros cantando, risadas de crianças, latidos de cães, buzinas de bicicletas. Ao longe vejo uma majestosa mangueira. Corro até ela desesperada. Meu estômago grita por seu sabor e penso em como poderei me deliciar de todas aquelas frutas num único instante, antes que a dor colossal do inverno me arraste novamente.
Subo na mangueira, pego seu fruto na mão e o admiro com euforia. Há muito tempo eu não me deparava com o sabor. Meus dias acordada tem sido alimentados por coisas que encontro nas lixeiras das ruas, pelos pães velhos que peço ao padeiro da esquina e pelas sopas que recebo vez ou outra, na madrugada, de jovens carregados de ideais e descontentes com suas vidas.
Encosto a pele amarela daquela fruta em meus lábios e tenho a sensação de que apenas o seu perfume poderia me saciar, mas o vácuo em meu estômago me lembra do contrário. Então, com todas as minhas forças eu a despedaço. Sua polpa desliza sobre mim sangrando o meu ataque e me faz desejar que o tempo pare naquele exato momento. Porém, abro os olhos em espasmos de frio e tento me espremer entre aqueles corpos pálidos.
Pergunto-me porque me deixaram aqui. Não sei quem era a minha mãe, nunca a conheci e também não tenho memórias dela, mas ouvi alguém dizer, certa vez, que quando eu nasci - coisa que nem era pra ter acontecido – que eu tinha cara de fome, olhos fundos, pele amarelada. Ela disse que pela minha cara poderia me chamar de desnutrição, não sei o que é que significa essa palavra, mas não parecia um nome de verdade, então, ela me chamou de Maria, que segundo ela, era como se chamava a mãe de Jesus.
Vez em quando um ou outro se lembrava dela por alguma razão e me perguntava se eu sentia a sua falta, mas como eu poderia sentir a falta de alguém de quem nem me lembro?
Já que a mulher de quem eu nasci só me olhara uma única vez na vida e depois desaparecera, Dona Zuleide era a quem eu chamava de mãe. Uma senhora de uns cinqüenta anos que me encontrara aos gritos de fome no beco escuro da Rua Girassol. Por razões óbvias, ela não podia amamentar, então, levou-me até Samira, que há uns quarenta dias também havia dado à luz outro cara de fome.
Samira era uma mulher alta, muito magra, de cabelos curtos e os poucos fios que possuía eram negros e embaraçados. Samira amamentou a mim e a seu rebento até que seu leite se secasse - coisa que não demorou tanto tempo, assim, para acontecer – pois como alguém que mal se alimentava poderia alimentar a alguém? - O fato é que embalada pelo leite de Samira e pelos carinhos maternos de Dona Zuleide eu me criei.
Nosso lar era grande, todas as ruas da cidade à nossa disposição. Andávamos em bandos organizados em busca de alimentos. Mas nos dias frios de inverno era difícil se alimentar, era difícil sobreviver.
Os olhos de escárnio sempre me acompanharam. Meninas em seus vestidos cor-de-rosa rodados e esvoaçantes viam em mim um animal sujo e assustador. Meninos viam algo grotesco do qual sentiam desejo e repulsa.
Esses mesmos olhares eram lançados também a Paulinho e Kadu. Estávamos sempre juntos. De certo modo eles me protegiam e era mais fácil eu conseguir alimentos nas portas das casas do que eles. As pessoas os temiam mais do que a mim. Os dois apareceram no beco num dia chuvoso, e foram acolhidos por Dona Zuleide. Paulinho tinha de 16 anos, Kadu 19, e eu 14.
Sem mais conseguir me manter na mangueira, abro os olhos. É dia, mas um dia escuro e sombrio. Deprimido. Sinto fome. As mangas não estão mais em minhas mãos. Tento acordar Dona Zuleide para começarmos mais uma busca por comida, mas ela não acorda. Ela está maltratada agora pela idade. Não suporta mais. Ela não desperta. Grito por Paulinho e Kadu. Eles vêm. Mas ela não desperta. O frio a consumiu. Desesperados, saímos correndo e pedindo por ajuda. Mas ninguém nos ouviu. Ninguém nos olhou. Ninguém nos percebeu.
Decidimos, então, continuarmos sozinhos, apenas nós três. Todas as noites eu buscava em meus sonhos a vida que eu desejava ter. Nem sempre era possível. Muitas vezes eu tinha pesadelos. Muitas vezes eu sonhava que Dona Zuleide ainda estava ali. Velha, cansada e maternal.
Com o tempo, Paulinho e Kadu foram mudando de alguma forma. De uma forma que eu não sabia explicar. Ás vezes seus olhares para mim eram misteriosos. De algum modo eu não percebia mais neles o afeto de sempre. Algumas noites eles saíam e me deixavam sozinha. A penumbra da noite era assustadora agora e eu temia adormecer sozinha. Ficava esperando por eles, para então fechar meus olhos e buscar pelos meus sonhos.
O verão havia chegado. Os dias eram de sol intenso. Havia muitas folhas nas árvores. Era possível ver mais crianças brincando nas ruas ou nos jardins de suas casas.
Resolvemos ir nos banhar no rio que cortava a cidade. Naquele dia uma senhora, já de idade avançada, nos levou até a sua varanda e nos serviu um delicioso bolo de laranja e uma limonada. Era o que ela tinha pronto e poderia nos oferecer. Não entramos em sua casa. Mas sua varanda era limpa, cheirava a flores e tinha uma rede branca pendurada nos pilares. Depois de satisfeitos, ela nos deu alguns trocados, que Kadu agarrou e colocou no bolso de sua calça encardida. Então, felizes e momentaneamente saciados, seguimos para o rio.
Eu entrei primeiro e fiquei brincando com meus cabelos longos que deslizavam sobre a água. Paulinho e Kadu estavam sentados à margem e me olhavam. Eu gritei para que entrassem, mas eles só acenaram com a cabeça e continuaram a me olhar trocando olhares entre si e dizendo algo que eu não podia ouvir de onde estava. Então, eu resolvi ir de encontro a eles.
Deitei-me sobre a margem e deixei que o sol me aquecesse. Fechei os olhos. Quando os abri os dois estavam ao meu lado. Não sei descrever exatamente o que senti, mas certamente era medo. Senti vontade de gritar e tentei fugir, mas minhas pernas ficaram moles. Eu não conseguia gritar, minha voz não saia. E por instinto eu imaginei de alguma forma o que iria acontecer. Eles não eram mais os dois meninos que me protegiam. Então, Paulinho me agarrou pelos braços, enquanto Kadu arrancava minhas roupas. Com força, jogaram-me no chão. Seus olhos brilhavam e havia desespero neles. Fechei os olhos novamente. Quando os abri mais uma vez, estava em um jardim. Havia muitas flores, muitas árvores, alguns brinquedos. Eu usava um vestido branco, cintado com uma fita de setim. Então ouço uma voz: “Venha minha filha, venha logo! Vamos fazer um piquenique”.
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Produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita