terça-feira, 16 de novembro de 2010

O começo que nasce para morrer - por Ítalo Puccini

Se um fim é uma possibilidade de começo, um começo deve ser também uma possibilidade de começo. De recomeço, talvez. Muito possivelmente. A tendência de um começo é a morte instantânea. Ao mesmo tempo que o renascer. Nenhum recomeço advém do nada. Ao contrário de um começo, que por vezes - talvez nunca? - faz deste (im)possível sua matéria bruta.
O começo de um texto é aquilo que mais renegamos. É a substância que brotamos de nós para ser jogada fora. É nosso apêndice. Nascido para morrer.
E mesmo aquele começo - de texto ou qualquer outro começo - que se apresenta a todos como definitivo, aquele começo que ficou definido como o começo de algo, está entregue à mudança constante. Não à morte, mas à mudança. Pois ele nem sempre será lido como o começo que se propôs a ser. Por que não o lermos como uma possibilidade de final, então? Será daí que todo fim é um começo?, uma vez que cada nova leitura pode ser a morte e o enterro da leitura anterior, sugada antes de não mais existir.
O começo de livro que até hoje mais me marca é este: "Na primavera de 1998, Bluma Lennon comprou numa livraria do Soho um velho exemplar dos Poemas de Emily Dickinson, e ao chegar ao segundo poema, na primeira esquina, foi atropelada por um automóvel". É do livro "A casa de papel", do argentino Carlos Maria Domínguez. Por que este começo? Porque a mim toca profundamente. Porque eu, enquanto leitor que sou, prendi a respiração - com o livro em mãos - ao ler este trecho, e me detive nele por muito tempo, para depois ir adiante no romance. Um bom começo também pode ser um caminho para o abismo da decepção.
O começo como morte é a oportunidade de não estranharmos muito o novo começo, o recomeço. E de não sentirmos muito aquele que não mais existe, porque nada nem ninguém vem para substituir algo ou alguém, mas para acrescentar, para existir a partir daquilo/daquele que não mais.

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Produção proveniente do décimo encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

8 comentários:

  1. Achei legal essa neura do começo, embora seja eu mais neural(?) de final.
    Dá-lhe, Ítalo!
    Abraço

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  2. “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.

    O Gabriel García Márquez demorou mais ou menos três meses para escrever a primeira frase do Cem Anos de Solidão, já que segundo ele “a primeira frase deve ser o laboratório onde se resolve a maior parte dos problemas do livro, desde o tema até o estilo e o tom”.

    Ela foi considerada, numa matéria da revista Veja há uns dez anos, uma das 6 (?!!) melhores frases iniciais da literatura, ao lado de:

    - Vladimir Nabokov em Lolita:
    “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo Li. Ta.”

    - Leon Tolstoi em Anna Karenina:
    “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira”

    - Graciliano Ramos em Vidas Secas:
    “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes”.

    - Albert Camus em O Estrangeiro:
    “Hoje minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”.

    - Franz Kafka em A Metamorfose:
    “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.

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  3. mas peraí, A casa de papel é ruim, então? Fiquei curioso

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  4. maravilhosos os comentários de vocês, gente!

    ricardo, o final intriga/inquieta tanto quanto o começo. é ótimo pensarmos também no final como um novo começo, não?

    enzo, que brilhante tua ideia de colocar aqui esta informação. quantos começos para pensarmos!

    edu, ótima tua leitura. deixei vago mesmo se gostei ou não da casa de papel. justamente para que causasse essa dúvida no leitor. e aí, será que o livro vale à pena? somente lendo-o para saber :)

    abraços!

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  5. Acho o título mais difícil do que o começo.

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  6. eu fiquei lembrando dos paradoxos de Zenão, o começo do começo

    abraço

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  7. hummm, já vi falarem bem dele.
    que suspense... vou procurar!
    valeu

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  8. Bom, isso aqui fez o meu cérebro dar reviravoltas, rs. E esse começo do Carlos Maria, realmente é o que há. Boa sacada essa do começo como morte; acho que vou usar mais disso e parar com o velho clichê de matar todos os meus personagens no fim porque não sei o que fazer com eles, rs. Abraço, man!

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