segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Escrever como o debate intermitentemente esquizofrênico entre o eu-lírico e o eu-louco

por Juliano R. Maciel

Tem gente que não regula bem. Há doidos. Há loucos de pedra. Normais são muitos, reconheço. Alegro-me, contudo, ao saber que posso contar com os doidos para atazanar a paz pouco merecida da gente que fecha os olhos para o que não presta (doravante, normais).
Esses doidos são os tais que não funcionam direito como seres humanos. Não gostam de nada, às vezes, nem de não gostar de coisa alguma. Em contrapartida, há aqueles doidos que gostam de tudo, que não vivem sem nada, que gostam sobretudo de gostar das coisas que gostam. Constituo-me, assim, como doido.
Mas minha doideira é ambivalente, o que me permite enumerar enfim o terceiro tipo de doido da tríade insana que postulo: diferente e igual aos que não gostam de nada, igual e diferente aos que gostam de tudo – há os doidos que gostam e desgostam das coisas todas, seja alternadamente ou ao mesmo tempo.
Acompanhe, por exemplos, minha linha de raciocínio: seria Amoz Oz capaz de gostar de todas as coisas? E Cora Coralina, de desgostá-las? Será que Cecília Meirelles demonstrou desdém? Em que Adélia Prado cuspia em cima? O que Monteiro Lobato gostava de elogiar? O que Nelson Rodrigues amava acima de tudo?


Esses doidos são, antes de tudo, escritores. Não dos que exercitam o ato libidinosamente arriscado de rabiscar poemas em um caderno escolar ou mantém o hábito condenável de compor esquetes nas últimas páginas que possuem, mas daquele arquétipo do cientista maluco (sendo eles mesmos grandes mantenedores de arquétipos).

Meu eu-louco ojeriza:
“O que é a escrita, contudo, se não um espaço de testes? Grandes testes. Escrever é uma ciência, não é uma arte. Escritores são cientistas, gente chata e banal dada a grandes acontecimentos. Fazem alarde de ocasiões. Fazem pouco do que é visceral. Criticam. Escrevem A Montanha Mágica. Mantém fantasias secretas com Madame Bovary e querem muito outro fim sangrento para Os Miseráveis. Eles são cientistas, sim, pelo fato de recriarem o que já foi criado e recriado centenas de vezes, ou cientistas pelo fato de testarem em seus laboratórios misturas que levam a resultados ainda indizíveis.
Sim, pois o que são livros senão laboratórios? Capítulos são tubos de ensaio onde se misturam componentes históricos, sociais, humanos, divinos e diabólicos, despejados todos no grande cadinho da obra prima, uma redoma de vidro e tinta de onde se pode observar muito confortavelmente, como leitor, o resultado de testes não pensados. E se aqueles personagens existissem? E se aquelas guerras, celeumas, curas, milagres, mundos, todos tivessem existido? O que seríamos todos nós hoje? O que aconteceria se o que é escrito fosse um relato da realidade inescapável? Bem, isso é a escrita: um local seguro onde cientistas malucos fazem testes, onde componentes instáveis são expostos a reagentes explosivos, onde podemos ter uma noção do que seríamos e do que faríamos se o “E se...” pudesse sempre ser escolhido, avaliado e, quando necessário, apagado.
Na escrita podemos fazer testes, tentar supor como é a natureza dos homens e de suas ideias, como se resolvem conflitos criados somente naquele laboratório de ratos que é o livro.”

Meu eu-lírico conjectura (não sem antes falar: “Zangaralhão!”):
“O que é a escrita, digo, se não uma brecha? Uma fenda entre mundos, um universo à parte, um parênteses imenso aberto por sabe-se lá que vontade? Soberbas vontades. Escrever é uma arte. É escapulir. É a ideia pulando para o papel e o escritor pulando para muito além. Escritores são escapistas, sem-vergonhas, levianos. Imaginam na hora de acordar e dormem na hora de realizar. Soneteiam nas filas dos bancos. Compõe no banheiro. Matam e ressuscitam personagens no passeio pela praça. Escrevem Mrs. Dalloway. Imaginam a luxúria da Senhora. Eparrei Oyá com O Sumiço da Santa. Se fizessem um auto-retrato no barro, modelariam só metade. Ou bateriam só metade do mármore. Ou pintariam só metade da tela. A outra metade está sempre inacabada, sempre precisando dos cortes finais, sempre precisando de um retoque, um reparo. Nunca estão acabados. Arte longa, vida breve, deixam de viver se acabando.
Claro, pois como ser um ser completo se o que se faz nunca está pronto? Como pode separar-se a obra do obreiro, remover de ambos a marca do inacabado? Não se escreve para os outros, escreve-se para si. Escrever não tem função social, mas é tão útil quanto o que é útil. Lê-se porque os seres humanos todos são bisbilhoteiros e querem mexericar a parte inacabada de certos alguns.
Se finda a obra, contudo, termina também a vida do obreiro. Escritores vivem depois de terminar um livro ou soneto porque não aguentam mais olhá-lo, querem livrar-se dele, afastar-se para sempre, parar de tentar acabá-lo. A perfeição, afinal, é o sinônimo da morte. Da hora de poder murchar.”

Concluo, enfim, que doidos por doidos o mundo seria pior sem livros, sem escrita, sem leitura. Laboratórios ou pedaços da alma, livros são espaços muito racionais ou muito mágicos para serem devidamente apreciados por qualquer ser humano. Nem quem escreve tem consciência do que realmente está fazendo, não entende com o que está lidando.
Mas também, para quê?

Zangaralhão!
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Produção proveniente do décimo encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita.

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