sábado, 4 de setembro de 2010

Improvisada fantasia - por Adriana Bernardes

Meus olhos insistem em se abrir, mas não quero acordar ainda. Quero permanecer no mundo paralelo e magnífico que meu inconsciente constrói todas as noites, e onde eu estava até agora, até que meu corpo começasse a me arrancar para a minha medíocre existência.
Sinto minhas pernas serem embaladas por uma manta gelada e úmida, trazida pelo vento em noites como esta, mas continuo tentando não me perder do meu sonho delirante. Não há cobertores ou papelões, nem sequer jornais, mas há corpos entrelaçados e sujos tentando fugir da violência dessa estação.
Os dedos de meus pés e mãos desapareceram, não os sinto mais. E tento, com muito esforço, me manter no mundo aconchegante da minha mente. Lá estou aquecida, faz sol. Há pássaros cantando, risadas de crianças, latidos de cães, buzinas de bicicletas. Ao longe vejo uma majestosa mangueira. Corro até ela desesperada. Meu estômago grita por seu sabor e penso em como poderei me deliciar de todas aquelas frutas num único instante, antes que a dor colossal do inverno me arraste novamente.
Subo na mangueira, pego seu fruto na mão e o admiro com euforia. Há muito tempo eu não me deparava com o sabor. Meus dias acordada tem sido alimentados por coisas que encontro nas lixeiras das ruas, pelos pães velhos que peço ao padeiro da esquina e pelas sopas que recebo vez ou outra, na madrugada, de jovens carregados de ideais e descontentes com suas vidas.
Encosto a pele amarela daquela fruta em meus lábios e tenho a sensação de que apenas o seu perfume poderia me saciar, mas o vácuo em meu estômago me lembra do contrário. Então, com todas as minhas forças eu a despedaço. Sua polpa desliza sobre mim sangrando o meu ataque e me faz desejar que o tempo pare naquele exato momento. Porém, abro os olhos em espasmos de frio e tento me espremer entre aqueles corpos pálidos.
Pergunto-me porque me deixaram aqui. Não sei quem era a minha mãe, nunca a conheci e também não tenho memórias dela, mas ouvi alguém dizer, certa vez, que quando eu nasci - coisa que nem era pra ter acontecido – que eu tinha cara de fome, olhos fundos, pele amarelada. Ela disse que pela minha cara poderia me chamar de desnutrição, não sei o que é que significa essa palavra, mas não parecia um nome de verdade, então, ela me chamou de Maria, que segundo ela, era como se chamava a mãe de Jesus.
Vez em quando um ou outro se lembrava dela por alguma razão e me perguntava se eu sentia a sua falta, mas como eu poderia sentir a falta de alguém de quem nem me lembro?
Já que a mulher de quem eu nasci só me olhara uma única vez na vida e depois desaparecera, Dona Zuleide era a quem eu chamava de mãe. Uma senhora de uns cinqüenta anos que me encontrara aos gritos de fome no beco escuro da Rua Girassol. Por razões óbvias, ela não podia amamentar, então, levou-me até Samira, que há uns quarenta dias também havia dado à luz outro cara de fome.
Samira era uma mulher alta, muito magra, de cabelos curtos e os poucos fios que possuía eram negros e embaraçados. Samira amamentou a mim e a seu rebento até que seu leite se secasse - coisa que não demorou tanto tempo, assim, para acontecer – pois como alguém que mal se alimentava poderia alimentar a alguém? - O fato é que embalada pelo leite de Samira e pelos carinhos maternos de Dona Zuleide eu me criei.
Nosso lar era grande, todas as ruas da cidade à nossa disposição. Andávamos em bandos organizados em busca de alimentos. Mas nos dias frios de inverno era difícil se alimentar, era difícil sobreviver.
Os olhos de escárnio sempre me acompanharam. Meninas em seus vestidos cor-de-rosa rodados e esvoaçantes viam em mim um animal sujo e assustador. Meninos viam algo grotesco do qual sentiam desejo e repulsa.
Esses mesmos olhares eram lançados também a Paulinho e Kadu. Estávamos sempre juntos. De certo modo eles me protegiam e era mais fácil eu conseguir alimentos nas portas das casas do que eles. As pessoas os temiam mais do que a mim. Os dois apareceram no beco num dia chuvoso, e foram acolhidos por Dona Zuleide. Paulinho tinha de 16 anos, Kadu 19, e eu 14.
Sem mais conseguir me manter na mangueira, abro os olhos. É dia, mas um dia escuro e sombrio. Deprimido. Sinto fome. As mangas não estão mais em minhas mãos. Tento acordar Dona Zuleide para começarmos mais uma busca por comida, mas ela não acorda. Ela está maltratada agora pela idade. Não suporta mais. Ela não desperta. Grito por Paulinho e Kadu. Eles vêm. Mas ela não desperta. O frio a consumiu. Desesperados, saímos correndo e pedindo por ajuda. Mas ninguém nos ouviu. Ninguém nos olhou. Ninguém nos percebeu.
Decidimos, então, continuarmos sozinhos, apenas nós três. Todas as noites eu buscava em meus sonhos a vida que eu desejava ter. Nem sempre era possível. Muitas vezes eu tinha pesadelos. Muitas vezes eu sonhava que Dona Zuleide ainda estava ali. Velha, cansada e maternal.
Com o tempo, Paulinho e Kadu foram mudando de alguma forma. De uma forma que eu não sabia explicar. Ás vezes seus olhares para mim eram misteriosos. De algum modo eu não percebia mais neles o afeto de sempre. Algumas noites eles saíam e me deixavam sozinha. A penumbra da noite era assustadora agora e eu temia adormecer sozinha. Ficava esperando por eles, para então fechar meus olhos e buscar pelos meus sonhos.
O verão havia chegado. Os dias eram de sol intenso. Havia muitas folhas nas árvores. Era possível ver mais crianças brincando nas ruas ou nos jardins de suas casas.
Resolvemos ir nos banhar no rio que cortava a cidade. Naquele dia uma senhora, já de idade avançada, nos levou até a sua varanda e nos serviu um delicioso bolo de laranja e uma limonada. Era o que ela tinha pronto e poderia nos oferecer. Não entramos em sua casa. Mas sua varanda era limpa, cheirava a flores e tinha uma rede branca pendurada nos pilares. Depois de satisfeitos, ela nos deu alguns trocados, que Kadu agarrou e colocou no bolso de sua calça encardida. Então, felizes e momentaneamente saciados, seguimos para o rio.
Eu entrei primeiro e fiquei brincando com meus cabelos longos que deslizavam sobre a água. Paulinho e Kadu estavam sentados à margem e me olhavam. Eu gritei para que entrassem, mas eles só acenaram com a cabeça e continuaram a me olhar trocando olhares entre si e dizendo algo que eu não podia ouvir de onde estava. Então, eu resolvi ir de encontro a eles.
Deitei-me sobre a margem e deixei que o sol me aquecesse. Fechei os olhos. Quando os abri os dois estavam ao meu lado. Não sei descrever exatamente o que senti, mas certamente era medo. Senti vontade de gritar e tentei fugir, mas minhas pernas ficaram moles. Eu não conseguia gritar, minha voz não saia. E por instinto eu imaginei de alguma forma o que iria acontecer. Eles não eram mais os dois meninos que me protegiam. Então, Paulinho me agarrou pelos braços, enquanto Kadu arrancava minhas roupas. Com força, jogaram-me no chão. Seus olhos brilhavam e havia desespero neles. Fechei os olhos novamente. Quando os abri mais uma vez, estava em um jardim. Havia muitas flores, muitas árvores, alguns brinquedos. Eu usava um vestido branco, cintado com uma fita de setim. Então ouço uma voz: “Venha minha filha, venha logo! Vamos fazer um piquenique”.
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Produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita

4 comentários:

  1. Um texto vertiginoso espiralando, consumindo tudo como um torvelinho.

    Abraços!

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  2. Nossa, Adriana, parabéns!
    Ficou realmente denso e com essa veia social tão emocionante!
    Parabéns! Adorei!

    Beijos!
    Ana

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  3. Quanta intensidade e ternura ao mesmo tempo em uma história trágica. Muito bem escrito.

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  4. Amiga, coração apertado e revolta sobre a sociedade em que vivemos!
    Quantas pessoas inocentes e ingênuas passam por isso todos os dias e ngm faz absolutamente nada!
    Para algumas pessoas a morte é a salvação e não algo a se temer, ao contrário da vida!
    Parabéns pela obra, cada vez que leio seus textos me emociono!
    Continue assim...

    Bjos
    Aline H.

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