quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Até o fim - Adriana Bernardes



Não há nada de muito importante que eu possa lhes contar sobre a minha vida. Não tive grandes feitos. Não deixei nenhum legado relevante. Fui apenas mais um número para o governo. Também nunca me interessei verdadeiramente por nada. Não me casei, tive poucos e insignificantes relacionamentos amorosos. Digamos que as mulheres nunca viram nada de muito promissor em minha pessoa, e eu, por outro lado, não desejava me preocupar com os assuntos rotineiros de uma relação e os destemperos femininos, ou mesmo com aquela rotina “todo dia ela acorda e faz tudo igual...”
O que sempre me acompanhou nesses anos todos – e confesso que somente agora, e nem sei por que, me dei conta disso – foi a música. Penso agora que de algum modo ela sempre esteve presente. Muita coisa me faltou durante a minha vida, desde a minha infância, “como fui levando não sei explicar... fui assim levando...”. Parece até que “quando eu nasci veio um anjo safado, o chato do querubim, e decretou que eu estava predestinado a ser errado assim”.
Mas eu nunca fiz nada de mal, não, às pessoas. Também não fiz nada de bem, mas apenas vivi. Acomodei-me com o pão de cada dia e fui seguindo.
Minha casa sempre foi muito simples. Vivo nela desde que nasci. Antes morava nela eu, mais três irmãos e meus pais. Dos três irmãos, um morreu, um foi preso e outro casou e virou pastor da igreja. Meu pai, que era mesmo chegado numa branquinha e vivia metido com gente que não prestava, num dia que não me lembro qual “amou daquela vez como se fosse a última, beijou sua mulher como se fosse a última, a cada filho seu como se fosse o único e atravessou a rua com seu passo tímido”. Quando do ocorrido, eu estava com treze anos e, desde então, nunca mais o vi. Minha mãe morreu alguns anos depois. Acho que de tristeza. E eu fui criado pelos meus irmãos.
Nossa casa era de madeira. Possuía uma cozinha e dois quartos. O chão da cozinha era de chão batido. O do quarto uma mistura de vários pisos que foram ganhos de alguns vizinhos. O banheiro era do lado de fora da casa. Naquela época chamávamos de mictório. Era de madeira e ficava há alguns metros de nossa casa. Num dos quartos dormíamos eu e meus três irmãos, todos juntos em cima de um colchão de casal que encontramos na rua para ser jogado fora, no outro meus pais. Desde que todos se foram eu estou sozinho aqui. Nada mudou na casa. Nada mudou em mim.
Mas o que me fez voltar a esses tempos de outrora foi a lembrança de que uma coisa sempre havia nesta casa enquanto todos ainda caminhavam por aqui, a música. E ainda hoje em dia ela se faz presente.
Meu pai chegava à tarde da mecânica em que trabalhava, servia-se de uns goles, deixando a marca de graxa de suas mãos no copo e botava sua vitrola para cantar. Então seguíamos noite adentro ouvindo suas canções favoritas. Não que ele conhecesse outras canções, aquelas eram favoritas porque eram as únicas que ele conhecia. Ele ganhou o álbum de presente de aniversário do tio Henrique e gostou tanto que todos os dias em nossa casa eram embalados por aquele “LP”. O nome que aparecia na capa do disco era Chico Buarque.
Hoje, aqui, lembrando desses tempos, me pego a pensar que meu velho pai alcoólatra tinha muito bom gosto. Mas acho que ele nunca soube disso. Que ouvia mesmo porque lhe agradava aos ouvidos.
Durante um tempo eu fiz parte do coro da igreja, mas como eu não podia cantar as canções que eu gostava e somente as que me eram impostas, logo desisti da atividade.
Na frente de nossa casa havia um vizinho, Senhor Francisco, que tinha um velho violão. Nos finais de semana, que era quando era possível vê-lo em sua varanda, ele tocava aquele violão durante horas seguidas. Nos outros dias não era possível vê-lo porque ele estava sempre trabalhando. Ele era caminhoneiro e durante toda a semana andava pelas estradas. A casa do Senhor Francisco era bem diferente da nossa. Era de tijolos, tinha uma grande varanda, um jardim com flores que sua esposa vivia a cuidar. Sempre que ele se sentava para tocar seu violão num banquinho de madeira feito por ele mesmo, seus filhos, que eram dois, um casal, e sua esposa, sentavam-se em seu redor para ouvi-lo e cantar com ele. Eles cantavam diversas canções, muitas eu nem conhecia, mas eu gostava. Algumas eram da igreja, essas eu conhecia e cantava baixinho com eles, como que me infiltrando naquele momento, assistindo-os da minha janela, escondido para que não me vissem. Eu sentia que havia algo naquela família que não havia na minha. Uma troca de afeto e de cumplicidade em seus olhos que não havia na minha.
Como eu ia dizendo, depois que todos se foram, eu fiquei aqui sozinho. Eu sempre convivi bem com esta solidão. Cozinhava quando sentia fome. Bebia quando sentia falta de algo que eu não sabia o que era. Não como o meu pai bebia, mas bebia. Ia à casa de Dona Consuelo quando desejava ter uma mulher.
Mas o fato é que agora, diante desta face enrugada que vejo neste espelho quebrado, me pego a pensar sobre o que fiz nessa minha vida.
“Você que inventou a tristeza, ora tenha a fineza de “desinventar””, porque não me agrada em nada essa angústia que me toma. Escolhi caminhar sozinho e decido continuar assim. Coloco a velha vitrola de meu pai para tocar. Todas essas lembranças que lhes contei me fizeram chegar a uma conclusão. Nada foi tão insignificante assim. Nada foi tão sem sentido. Há uma coisa que sempre esteve presente, que me agradava e que me dava e dá forças ou ânimo, que seja, para continuar, a música. Houve, pois, algo de importante sim nessa minha vida.


Nome e autoria das canções citadas no texto:

Até o fim – Chico Buarque – 1978
Construção – Chico Buarque – 1978
Apesar de você – Chico Buarque - 1978
Cotidiano – Chico Buarque – 1971
O meu guri – Chico Buarque – 1981
 _ _ _ _ _ 
Produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita.

Nenhum comentário:

Postar um comentário