Ela acordou. O Gato Preto não estava mais lá, nem as outras histórias. Olhou ao redor e viu as mesmas paredes que por serem sempre tão diferentes acabavam sendo as mesmas – mas naquele dia eram azuis, não o tipo de azul contente por lambuzar um pincel e a cara de um pintor, mas um azul extraterreno que só se vê no neon dos cabarés e no brilho das estrelas. Sim, aquele azul com que Deus pinta a faixa de segurança para fora deste mundo.
Ela acordou de verdade. O Gato Preto estava na cabeceira, bem como as outras histórias e Antônio e Cleópatra. Mais livros estavam a um canto do quarto entapetado, livros que formavam uma pilha imensa, bagunçada, pareciam escombros empilhados contra o encontro de duas paredes – e as paredes agora eram brancas. Seu lençol branco sem mancha alguma voou para longe, e ela levantou. Colocou os pés no chão, mas ao invés do tapete vermelho bordado de dourado havia pedra, preta, fria, concreta. Aquelas pedras pontudas perfuravam pés alvos. Sentia dor. Tinha que levantar, agora tinha.
Mas acordou de novo. Abriu os olhos muito lentamente, embora a ânsia de acordar fosse maior e o medo maior ainda. Olhou ao redor. No teto, entre a mancha de infiltração e uma teia de aranha envelhecida, quase dourada de tão antiga, via um buraquinho preto de onde era possível enxergar um pedaço a mais da Via Láctea. Puxou o lençol amarelo até a altura do nariz, deixando apenas os olhos – um azul e outro verde – e a testa à mostra. Desviou o olhar para a parede do lado de sua cama e viu que ela não era de pedra, mas um imenso coral róseo. Onde ela estava agora? Olhou para o chão antes de sair da cama, o tapete azulado como o mar dos náufragos estava lá, encharcado. Pisou-o, sentindo o frio invadindo as solas dos pés descalços à medida que estes expulsavam a água salgada do tapete.
Pé ante pé, foi andando pelo quarto ensopado. Gotas pingavam do teto, a infiltração escorria pelas paredes – brancas – e empoçavam. Os livros ainda estavam lá, empilhados, um monte de páginas e letras e gravuras e mofo prestes a desmoronar sobre ela. Puxou uma brochura amarelada, inchada pela umidade. O Apanhador no Campo de Centeio.
Fechou os olhos para acordar novamente. Acordou. Sua cama estava quente. Empurrou o colchão com um dos cotovelos enquanto girou o corpo para endireitar-se na cama. Ainda era o mesmo dia, ainda era o mesmo minuto do qual se lembrava na última vez. O Gato Preto não estava na escrivaninha, Antônio e Cleópatra também não. Nem as paredes, nem o chão, nem o teto – só a cama e a escrivaninha. Estava voando, muito alto, nuvens amareladas pelo sol poente abaixo, a mancha azulada do fim do céu acima, o tom carmesim conjurado sobre o horizonte. Então viu que Casamento do Céu e do Inferno estava passando ali perto, um único passo e podia alcançá-lo. Mas tinha medo de cair. Mas tinha mais medo ainda de acordar de novo. Deu um passo para fora da cama, e quando tirou a outra perna de baixo do lençol vermelho despencou das alturas – se é que de lá pode-se despencar alguma coisa – e começou a cair – se é que não estivera sempre caindo.
Caiu durante semanas inteiras e não parecia sair do lugar. Não via mais a cama, nem a escrivaninha, nem o Casamento do Céu e do Inferno. Estava sozinha, cercada pelo ar, nuvens imensas ao longe, ao seu redor. Preferia viver assim a ter que acordar uma vez mais. O vento empurrava-a para cima, a gravidade a puxava para baixo. Não via limite algum, nenhum, absolutamente nenhum. As nuvens barravam até a visão da terra, que devia estar muito mais abaixo, e nuvens não são um limite difícil de se cruzar. Contanto que não parasse nelas, ficaria livre. Para sempre. Bastava não acordar mais.
Acordou. Seu quarto era preto, escuro. A única luz vinha de uma rachadura no teto por onde entrava um facho decadente de luz solar. Dormia em uma catacumba decrépita, mas não estava sozinha – no primeiro andar de seu beliche uma morta repousava sua podridão, os vermes comiam em silêncio. Olhou ao redor e no chão de azulejos pretos via ratos paupérrimos esmolando um naco de carne. As camas dos outros mortos estavam arrumadas, os lençóis tão roxos quanto o dela, mas eles não se moviam, não faziam nada. Só se deixavam consumir pelos mortívoros glutões.
“Os ratos estão aqui, comigo neste jazigo.” Disse para si mesma.
“Ela falou alguma coisa, vamos chamar o doutor.”
Mas acordou. A enfermeira fechou a porta. Abriu o único olho bom que restava e olhou ao redor. O quarto era branco, as paredes eram brancas, a cama e o lençol eram brancos, o rastro deixado pelas enfermeiras era branco, o chão era branco, tudo era muito branco. Branco demais. Branco como a morte na face dos mortos, branco como um osso limpo de carne, branco como plumas arrancadas de um pombo morto. Um branco sem paz, um branco desvirtuado de tão limpo.
Fechou os olhos. Ali, na alcova das pálpebras enegrecidas pela ausência da luz, encontrou um lar. E o melhor – não dormia. Estava em um lugar diferente – sem paredes, sem chão, sem teto; mas acordada. Desperta. Lúcida? A escuridão dos olhos fechados a enleou e não a deixou mais sair. Estava bem, estava acordada. Quem diria que não no mundo dos sonhos, mas no dos olhos fechados estaria bem? Ouviu passos no corredor da ala de oncologia, vinham vê-la, talvez sedá-la. Não queria dormir. Não de novo. Não queria acordar novamente, não de novo.
Na escuridão de seu novo mundo, não via nada, não sentia nada, não pensava nada, não dormia. Estava acordada. Estava bem.
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produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita.
Hoje ao acordar e ao fazer as minhas orações, agradeci a DEUS por ter-me proporcionado a graça de conseguir grandes amigos.
ResponderExcluirBeijos no coração e feliz dia dos amigos.
Rosemildo Sales Furtado
Nooossa! Li o texto numa "paulada" só e não queria que acabasse. Que texto bem escrito! Parece mesmo saído de um livro, de algum autor com grande conhecimento de contos e da alma humana.
ResponderExcluirPobre mulher com câncer... Que desesperador o mundo dos sonhos aterrorizar mais que o real.
Parabéns, Juliano! Conto encantador.
Abraços!
Ana
Parabéns, Ju!
ResponderExcluirTeu conto é uma construção bem diferente, inovou na forma. Me lembrou alguns livros e filmes.
Você já leu (ou viu, pq há um filme baseado no livro) "O escafandro e a borboleta", Ju? é um autobiográfico, a história do Jean-Dominique Bauby, ex-redator chefe da Elle. Depois de um acidente vascular cerebral, ele fica totalmente paralisado. Sua única janela de comunicação com o mundo é o olho esquerdo. Todas as manhãs, uma moça dita o alfabeto e ele pisca uma vez para sim e duas para não. É assim que se comunica com o mundo. E é assim que consegue escrever um livro.
Também me lembrou um outro filme que eu vi há um tempão, "Casa de areia e névoa", pelas descrições do espaço e pelo drama psicológico.
A maior prisão é a prisão do nossa próprio corpo. Mas, se estamos bem, não o sentimos; apenas percebemos o próprio peso na doença. Ainda bem que o espírito e a imaginação não conhecem essas fronteiras...
Abraço,
Juli.
Ítalo, blz?
ResponderExcluirvim agradecer tuas visitas lá no Traversuras. brigado, mesmo, por prestigiar meus escritos!
abraço!
=]
\o
Sabes o que acho dos teus escritos? Ah, não tenho vontade de falar aqui. Apenas o que se vê na minha home page: és minha inspiração. ♥
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