segunda-feira, 26 de julho de 2010

Carta sem título - por Ítalo Puccini

J.,

Estranho foi você ter perguntado pela minha mãe, assim, de repente. Se tanto demorei para lhe escrever foi porque perdi minha mãe. Esses sustos que nos pegam assim, pelo calcanhar, de costas, despreparados. Era uma tosse. Depois uma dor na nuca. Uma febre que não passava. E o sorriso sem graça agora é meu. Depois de dias de internação. De diagnósticos confusos. Quando me contaram o que era, não me restou nada a fazer se não ficar assim catatônica. É tradicional, não é? Pelo menos é o que dizem. Da gente ficar assim fora do ar ao receber a notícia, precisar de amparo, contatar os parentes. Aí vieram, os parentes. Lá de longe. Porque eu sou bem sozinha. Agora ainda mais. Éramos só eu e minha mãe. Há bastante tempo. Há vinte e dois anos, desde que meu pai foi embora. Dizem que até já casou e tem uma filha. Mas não apareceu no velório de minha mãe, não. Mora longe, acho.
Durante esses dias todos eu ficava vendo sua carta ali, na mesinha da sala. Entre três sofás e uma televisão preta e branca. Debaixo de uma bíblia. A bíblia que minha mãe lia sempre, todo dia. Ela assistia ao terço das seis da manhã e ao das seis da tarde. E sempre depois de assistir ao terço ela fazia o sinal da cruz e beijava a bíblia. Nunca reparei se era sempre a mesma página. Agora eu joguei fora aquela bíblia. Você acredita em Deus, J.? Mas eu ficava assim, respondendo a sua carta por pensamento, sabe? Pensando assim mesmo, ora, se ele, ou ela, afinal, me achou ao acaso, se de repente eu recebi uma correspondência de alguém que eu não faço ideia de quem seja, por que esse alguém não entenderia o que estou pensando agora e, ainda mais, por que esse alguém não receberia minha resposta, então, por pensamento, principalmente entendendo que no momento eu estaria impossibilitada de escrever? Sim, eu sou do tipo, J., que abre cartas de desconhecidos. Na verdade, a sua carta foi meu sopro de vida durante esses dois últimos meses. Eu não ligava mais para muita coisa, não. Mas eu pensava diariamente numa carta que eu tinha para responder. Só que na verdade eu gostaria de prolongar essa resposta quase que infinitamente, sabe? Por medo. Você me entende, J.? Por medo. Assim. Vai que eu respondo a você, e você não mais me escreve?
Não repara não na minha escrita, muito menos na minha letra. Essa escrita fragmentada, essa letra tremida. Esses recortes de mim. É que eu ainda não consigo dar conta de tudo, não. Tem uma pilha de contas atrasadas aqui na mesinha do abajur da sala, ao lado do braço de um dos sofás. Tem coisa há mais de mês aqui. Minha mãe ficou internada por trinta e nove dias. Eu contei. Eu vinha em casa, tomava um banho, descansava uma ou duas horinhas só na cama e voltava para o hospital. Eu sou professora. Pedi licença na prefeitura assim que o médico me disse que o caso da minha mãe era sério e que poderia ser irreversível. Engraçado são os médicos, não é, não? Eles sabem exatamente o que vai acontecer, ou o que já aconteceu, mas sabem como ninguém dar uma informação que não diz nem sim nem não. E aí deixam a gente assim, desnorteada, com cara de assustada, mas precisando mostrar uma segurança que não existe. Foi assim que cheguei na escola e falei que precisava de trinta dias de licença para cuidar da minha mãe. E quando me perguntaram o que ela tinha eu fiquei muda. Eu travei. E caí num choro. Na frente da diretora da escola. Que precisou chamar uma outra professora para me trazer um copo com água e açúcar para me acalmar e para que eu pudesse dizer aquilo que eu não sabia.
Foi então que eu percebi que numa carta eu posso verbalizar direitinho o que eu não sei. Acho que isso é o mais marcante numa troca de cartas, você não acha? Essa incongruência. Nós escrevemos para contar daquilo que é nosso, daquilo que nos acontece, daquilo que acreditamos que é nossa vida, mas na verdade a gente acaba descrevendo aquilo que não sabemos, aquilo que não é nosso mas nós pensamos que é. A gente se escancara para um outro, mas pouco percebe que a gente se escancara também é para nós mesmos numa escrita de carta, seja para quem conhecemos, seja para um desconhecido, como você é para mim, J.
E foi isso o que me levou a enfrentar esse meu medo de lhe escrever. O medo de que não me respondesse mais. E eu sei que ao escrever isto eu empurro a você uma certa pressão, uma necessidade-de-resposta-para-que-ela-não-se-suicide. Mas eu digo que não é para tanto assim. Eu sei o que é viver sozinha, sabia? Sei, sim. Sei muito bem. É algo inerente a mim. O estar só. Portanto, não se obrigue a me responder, não. Passo, a partir desse momento, a não esperar carta nenhuma em meu apartamento. Será melhor assim, creio.

P.S.: Mesmo assim, eu gostaria, sim, de saber da mãe que caiu nesse mundo para você, J. Só isso.

Com afeto,
Cê.
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produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita.

4 comentários:

  1. Nossa, Ítalo! Que carta envolvente!
    Eu que perdi meu pai a pouco mais de um ano me identifiquei demais com esse "desnorteamento", com esses diagnósticos que nada nos dizem, com se agarrar a qualquer coisa pra seguir, com se sentir sozinha, mais que sempre.

    Descrição de sentimentos e sensações, ainda mais assim melancólicas é algo lindo demais de se fazer e de se ler, mesmo que entre naqueles espacinhos de nossa sensibilidade que tentamos esconder.

    Abraços! E o sexto encontro está chegaando...rs
    Ana

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  2. Isso dá uma série de cartas, uma série de histórias.
    Eu leria todas =)

    Abs

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  3. Eu lÍ NUM FÔLEGO SÓ! Que carta! Parecia que eu estava escrevendo, " me escancarando "! Gostei muito, muito,muito.Vou pedir "a sua mão" para o curta-metragem, aceita? Quer se casar conosco? Pense bem se fazer parte da nossa equipe,vai te fazer feliz...rsrsr...Preciso do seu email para enviar o pedido oficialmente.

    Outro abraço
    Neusa Doretto

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  4. Toda perda acarreta o dano do recomeço. O que vem é de certa forma herança, por mais que costure o novo. É para ler e reler. Recortes tamanhos.

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