terça-feira, 13 de julho de 2010

Vendem-se lembranças - por Ana Paula Kinas Tavares

A todos que possuem suas antigas casas em sonhos.
(Inverno, 2010)

Abro meus olhos, tudo parece saído de uma foto em sépia. O armário carvalho de três portas, um dia fora robusto, hoje tão velho já não fecha, tem um pôster de quando eu era menina com uma banda da qual não lembro nem o nome. Cinco garotos, que devem estar enrugados atrás de escrivaninhas de escritórios, sorriem numa montagem preta e branca colada com figurinhas de nossa infância. A tinta amarelada nas paredes começa a descascar, a cortina de renda encardida com um forro de tecido grosso e marrom veda qualquer luz. Eu deixei a porta entreaberta caso alguém possa me acordar. Mas, já não há ninguém, o silêncio escuro é meu único companheiro. Além do corredor, uma luz vermelha que entra pelos vidros trabalhados da janela do banheiro. Um vizinho, um maldito vizinho também com insônia. Se isso é hora de estar acordado? “Não deve ser boa gente”, diria minha mãe. Então não sou uma boa filha? Não devo ser, as outras crianças já cresceram e partiram, educam seus próprios filhos, constroem seus próprios lares. Tenho vontade de levantar, ir ao banheiro, talvez urinar. Mas, o piso ocre é frio e minhas pernas tremem. Melhor permanecer deitada, não devia ter acordado, ainda é madrugada e nem os pássaros ousam cantar.
Desisto, o sono não vai voltar. Não conheço canções de ninar, não tenho criado-mudo com abajur, nem livro ao alcance... Sempre achei chato contar carneiros. Minha perna direita escorrega para fora da cama, o pé se firma no chão gelado, um arrepio sobe até o pescoço e sofro calada. Afasto o cobertor florido do meu corpo, penso que devia estar há anos criando mofo neste armário, quem sabe foi do enxoval de minha mãe. Sento na beirada da cama e ouço aquele som característico dos móveis da minha casa: um ranger de madeira. Os dois pés pequenos e brancos no chão e um grande receio de me levantar. Não há o que temer, eu cresci por esses cômodos, não há nada que não conheça. O pó que cobre o chão não me fará mais mal em contato com a minha pele do que no ar que respiro. Levanto-me e ando até a grande porta escura entreaberta.
Seguro, de olhos fechados, o trinco e recordo o dourado envelhecido, sempre admirei esses trincos, ainda que antigos têm um presença imperial. Por um momento tenho onze anos, temo acordar meus pais e sinto a presença dos meus irmãos. A luz do corredor está acesa, corro até o banheiro já sentindo um líquido quente escorrer pela minha perna esquerda. Abaixo minha calcinha rosa de pequenas florzinhas lilases, ergo minha camisola branca de renda no seio e, quando, finalmente, sento na privada descubro que algum dos meninos se esqueceu de abaixar a tampa, está ainda mais gelado. O silêncio da noite é só recortado pelo encontro dos líquidos abaixo de mim, fico envergonhada. Pego três pedaços de papel higiênico, quase esqueço o ocorrido enquanto observo o cãozinho do desenho, em seguida volto a mim e seco o líquido em minha perna. Minhas bochechas estão quentes e vermelhas, como costumam ficar quando me vejo fazendo algo errado e temo ser pega. Corto mais um exagero de quadrados brancos e macios. Passo-os suavemente em minhas vergonhas, dobro-os perfeitamente e os jogo no cesto de plástico verde. A luz está apagada mais sei certinho onde está a pia, abro a torneira de prata o mínimo possível evitando mais barulho, lavo minhas mãos com o grande sabonete laranja de cheiro ruim.
Fecho a porta do banheiro - a luz do vizinho passou a me incomodar. Que cara sem noção, já passa das 3h, é quinta-feira! O que ele está fazendo? Senhor! Minha mãe não vive mais aqui, não há mais ninguém, por que ainda penso como eles? Volto ao meu quarto, agora só meu, tateando as paredes, na completa escuridão. Subo na cama, eu a lembrava mais alta, afundando menos, sem esse cheiro de coisa velha, mas com esse mesmo rangido do estrado. Tudo é tão velho por aqui. Como trazer um homem a um lugar que lembra mãe? Avó, diria algum dos meninos. Teria razão, por isso tento dormir sozinha e não consigo, além do vizinho com aquela infernal luz e a manhã nascendo com seus pássaros cantores. Eu devia dormir, amanhã tenho mais um encontro que não levará a lugar nenhum. Homens querem mulheres, não mais meninas em corpos envelhecidos.
Sinto no travesseiro o cheiro másculo de uma outra noite, bendito álcool: fada madrinha de mulheres como eu. Ele era tão bonito, cavalheiro, estava tão alcoolizado, excitado, foi tão fácil, prazeroso e, acabou tão rápido. Há pouco peguei no sono inebriada por essa essência, uma mistura de desodorante, suor, sabonete, lubrificante, hidratante e gozo. Deve estar por todo lençol xadrez, dos fortes traços vermelhos até os finos tons de azul, desde meus primeiros contatos sexuais. Há quanto tempo não é trocada esta roupa de cama? Instintivamente levo meu dedo indicador, com a unha tão bem feita em vermelho rubi, ao nariz. Sim, lá encontro o cheiro do desejo. Se não tenho ninguém, se não consigo dormir, é o melhor que tenho a fazer.
Acendo a luz pelo interruptor cinza e amarelo - bem convencional -, que fica acima da minha cabeça, sempre reclamei. Sua praticidade me causava incômodos durante a noite, vez ou outra uma voz de criança medrosa me acordava para acender a luz, uma vez acordada não me custava acender. A imensa luz amarela, rodeada por um vidro fosco de lustre que não é limpo há anos, invade o quarto. Vejo finalmente o outro móvel, além do roupeiro e dos beliches, no pequeno quarto quatro por quatro: meu querido baú. Lembro como se fosse hoje, meu padrinho tirando da caminhonete meu presente de Natal, grande e pesado, tão invejado pelos demais. Abri eufórica depois da ceia e descobri pequenos girassóis pintados à mão, fui me decepcionando, aos seis anos preferia uma boneca. Os adultos conversavam sobre o quanto era valioso aquele baú, “uma madeira resistente”, “acabamento impecável que já não se vê”. Pra mim era só o maior presente desagradável que podia ter recebido. Os meninos riram de mim por dias, acabei me acostumando, perdi um espaço no quarto, ganhei tempo para brincar. Minha mãe mostrava a todos que nos visitavam, “um maravilhoso baú”, “veio da Itália”, ainda hoje tenho cá minhas dúvidas sobre sua origem, é certo que é resistente, madeira boa mesmo, nem o tempo, nem os cupins conseguiram destruí-lo. É uma peça bonita para um quarto antigo, mas nunca deixará de ser um presente enfadonho para uma criança.
Fecho meus olhos, revivo as utilidades do baú e de meu quarto. Guardar bonecas, brincar, segredar meus poemas, livrar-me dos meninos, proteger minhas roupas íntimas, abrigar meus sonhos, esconder meus diários, ser cenário de pecados. Se nessa casa tive um confidente foi este baú, sem meu quarto o baú seria inútil, mas o quarto sempre foi de todos, só o baú para ser inviolável. Já não sei onde está a chave e nem a preciso, todos se foram, e me pergunto o que ainda faço aqui. Nunca gostei dessa casa, preferia que fosse mais perto da escola, que tivesse um jardim maior, pegasse mais sol, não fosse tão antiga. Eu gostava dos trincos, ah, dos trincos eu gostava. A chave presa à porta me protegia, o dourado me encantava, o redondo sempre me fascinou. A porta da frente não tem um trinco assim, talvez seja isso, nunca tive coragem de seguir, definitivamente, meu caminho.
Decido por acordar. Primeiro a perna direita, depois a esquerda, uma preguiça para abandonar o cobertor florido. Meus pés se firmando no ocre frio, alguns poucos passos e abro as cortinas rendadas e encardidas. Mais um dia que nasce, um dia sem sol, sem neblina, e tingido por aquele cinza de apatia. Sempre admirei dias assim, são como telas em branco em que podemos usar de todas nossas emoções para transformá-las no que quisermos. Se brincássemos lá fora, cantássemos e corrêssemos, o dia ia ficando alaranjado. Se dormíssemos mais que a cama, se ficássemos quietinhos e assistíssemos à TV, o dia ia escurecendo e a noite viria depressa. Mesmo que eu quisesse e a noite viesse, os meninos faziam questão de iluminar a casa. Sem eles aqui é tudo tão frio, tão quieto, tão sépia.
Vejo na grande janela de vidro e madeira umas poucas marcas de cola, faz tanto tempo, mas continuam ali. Como se provassem o que minha mãe dizia: “vocês são uns relaxados, não ajudam em nada”. Devia ser um adesivo da copa, talvez uma figurinha dizendo que amávamos nossa cidade, tínhamos vários e sempre trocávamos, ora era a cola que se estragava, ora a espera pelo penta. Eu queria ver esse quarto cuidado outra vez, acompanhar as flores crescendo no jardim, ouvir o riso de casa cheia, sentir o aroma de comida caseira. Todos eles partiram e me deixaram sozinha. Os meninos, os homens, os sonhos. Eu dizia que seria professora, queria três filhas e nem se quer me casei. Eu queria uma casa com jardim, conhecer Minas Gerais, ter afilhados, mas nem admiro mais as árvores. Onde tudo se perdeu? Quando? Eu era uma menina que corria por aqui, ainda ontem.
Choro. Choro uma dor barulhenta, guardada por anos, inexplicável por tantas razões. Choro a morte dos meus pais, a distância dos meus irmãos, o não conhecer dos meus sobrinhos, a falta de um amor, a desistência de casar, a impaciência com as crianças. Choro por ser uma contadora frustrada, por só ter ido até São Paulo, por escolher solidão a algumas crianças correndo, por viver trancada em apartamento, por não mais freqüentar a Igreja nem manter contato com minhas amigas de infância. Sem que eu quisesse me tornei a tia solteirona de que minha mãe me alertava, eu seguia tudo que ela dizia até que algo se rompeu e eu nem percebi. Gostaria de saber onde me perdi. Eu achei por muito tempo que era uma fórmula de sucesso óbvio, acreditei que teria uma família tão alegre quanto a minha.
Colo a branca placa escrita em vermelho “vende-se” logo acima do telefone da imobiliária. Achei que meus pais viveriam aqui para sempre, juro que achei. Imaginava uma feliz ceia de Natal com meus três irmãos, com meus sobrinhos, com minhas cunhadas, meu marido, meus filhos e meus pais. A casa toda enfeitada de verde e dourado como quando eu era criança. Meu pai se vestindo de Papai Noel, despertando o brilho dos olhinhos infantis. Minha mãe super preocupada com o peru, com a salada, pedindo ajuda para tirar a mesa senão com a demora da abertura dos presentes “a comida se estraga”. Meus irmãos comendo e bebendo muito, contando de suas vidas, rindo uns dos outros. As crianças brincando, descobrindo seus presentes, rendendo-se aos pedidos da minha mãe para que cantem as músicas de Natal ao Menino Jesus. E é claro, todos sorrindo se aglomerando no sofá, “para podermos recordar”, para mais uma fotografia em sépia.
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produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita.

4 comentários:

  1. um mundo em sépia seria um mundo cehio de pesar e saudades

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  2. Gostei, gostei muito do que li! Uma viagem deliciosa!

    bjs
    Neusa

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  3. Adorei Ana!

    Melancólico e atrativo. Lembranças de um cotiano que nós já vivemos e ainda vivemos, construindo nossas lembranças a cada dia.

    Abraços.


    Adriana.

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