Daniel era o que eu podia chamar de “caráter instigante”. Primeiro porque, entre todas as coisas, o que colho das pessoas é o inapalpável. E depois, essa característica oscilava nele. Ora conservador, com aquele olhar atento; ora disperso, desorientado, como que procurando seus próprios valores inestimáveis em outra pessoa.
Naquela tarde de segunda-feira, dia em que a sociedade sempre se vê cansada, ele estava lá, com aquele caminhar determinado, vestindo jeans surrados, e no corredor a iluminação dava um destaque especial ao seu olhar malicioso que me despertava ainda mais interesse. Escondeu-se na terceira sala, enquanto eu aguardava sua passagem, a uma sala de distância de onde entrou.
Chovia. Foi em um dos dias mais escuros de minha vida, no mês de outubro. Chovia. Esperei-o. Observei-o. Foi uma troca de monossílabos significantes. E dentro de mim a trovoada continuava, amansada pelo início de uma possível conquista.
Fui para casa. Senti a necessidade de uma conversa que me fizesse crer que alguém tem uma dor maior que a minha. Era noite e eu não tinha como procurá-lo. Era sexta, e talvez não o visse nos próximos dois dias. Não via a hora do tempo passar e fitar aquele rosto. O pouco que conheci me fez perceber que era uma pessoa só: não só de espírito, mas só em seus pensamentos, nas suas memórias. Com aquele jeito casual de se vestir, com aquela formalidade ao me dirigir a palavra, me conquistou.
Adormeci. Acordei sem esperanças e resolvi sair de casa. Na rua, andando solitária, encontro-o sentado em um banco. Achei que fosse ilusão, mas ele me disse oi de uma maneira surpreendente, informal. Ato mágico. Perguntei se ia demorar ali; respondeu que talvez, pois esperava o ônibus.
Minha face pôde ser lida por ele, sem mais dúvida: desapontamento. Devia eu perguntar aonde ele ia? Medo de estar me envolvendo nas intimidades alheias.
Seria pela minha indecisão, seria pelo destino... Seja qual fosse a razão, levou tempo demais e o ônibus chegou. O inexplicável levou-o. Eu fiquei. Ainda não pude dizer o que precisava dizer. Mas o conhecia. O suficiente, como se fosse há anos. Sabia que costumava levantar às oito, que tinha aquele jeito padrão de se vestir, mas que mesmo assim não deixava de chamar a atenção; que gosta das letras e das canções clássicas, que prefere comédias a filmes de terror e que é fã de best sellers. Gosta da chuva e da tempestade, adora animais e zela pela natureza.
O conhecia tanto... E sabia que ele também já me conhecia. Era apenas uma continuação. Sabia que há muito tempo ele aprendera as leis da vida, e que o que precisasse acontecer entre nós aconteceria. Eu esperaria.
Começou a chover. Mas cada gota bastava e me explicava que a vida vale a pena ser vivida quando se vive ao lado de outra vida.
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Produção proveniente do quinto encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita.
Sua escrita me surpreendeu.
ResponderExcluirNarrativa clara, eu gosto.
Beijos,
Tâmara
Uma narrativa em linha reta, clarividente de si mesma, apesar do círculo que a espirala. Não deve nada ao que propõe. E o fim feliz é algo digníssimo.
ResponderExcluirAbraços!
Í.ta,
ResponderExcluirtem mais coisinhas do Barthes por lá :)
obrigada pela sua presença no meu Reino.
Que é teu também ^^
Estou sumindo um pouquinho, mais precisando de algo, é só gritar, rs.
Abraços e boa semana!