Na manhã de hoje, sábado, encontramo-nos para o sétimo encontro do Círculo de Leitura e Produção Escrita, na sala do Lappe, das 9h às 11h.
A proposta foi a de continuarmos as leituras de narrativas curtas, para que pudéssemos, a partir das leituras, pensar em novas produções escritas, agora voltadas para este recorte literário: o texto curto, não necessariamente o microconto. Inclusive, não lemos microcontos, aquelas narrativas de uma só linha, de no máximo cinquenta ou cem palavras, por exemplo. Nossas leituras ficaram focadas em narrativas de poucas linhas.
Finalizamos, primeiramente, a leitura do livro "O triste fim do pequeno menino ostra e outras histórias", do Tim Burton. Novamente pudemos observar o tom trágico que seus contos apresentam. E outros detalhes nos surgiram, como por exemplo o uso de palavras como "menino e menina" nos títulos da maioria dos contos do livro. E a referência ao natal em algumas histórias do livro. Algo que somente acentua os socos-de-vida levados pelos personagens. Seguem duas das narrativas lidas hoje, da parte final do livro (para visualizar melhor, basta clicar nas imagens).
Na sequência à leitura e às conversas sobre o livro de Burton, passamos a ler algumas narrativas de dois livros do escritor português Gonçalo M. Tavares. Se no livro de Burton observamos uma forma de escrita toda em versos, ora ritmados, ora não, mas sempre apresentando um ritmo de leitura em prosa, a escrita de Gonçalo é toda em prosa, porém com a mesma intensidade trágica, com o mesmo texto seco, de poucas e essenciais palavras. Talvez a característica mais forte da narrativa curta - e também do microconto - seja justamente esta, a da concisão de palavras. Ao escritor cabe pouco dizer em palavras, e muito dizer naquilo que Piglia chama de segunda história de um conto. Segunda história esta que cabe totalmente ao leitor construir. Ou o leitor muito colabora na criação de sentido junto à narrativa curta, ou ela não cumprirá seu propósito.
Alguns exemplos de narrativas de Gonçalo:
Do livro "O senhor Brecht", um livro em que as narrativas muito lembram as de Burton, pelo tom trágico, pelo tom crítico, pela ironia mordaz e pelas metáforas construídas:
"O perigo da cultura
Uma galinha pensava tanto e era tão culta que ganhou uma obstrução interior, deixando de pôr ovos. Mataram-na no dia seguinte".
"A importância dos filósofos
O filósofo dizia que só os homens faziam o importante, enquanto os animais só dispunham de ações insignificantes.
Foi então que chegou o tigre e devorou o filósofo, comprovando com os dentes a teoria anteriormente apresentada".
"Diamantes
Em vez de uvas os cachos do reino deixavam cair sobre a terra diamantes.
- Diamantes, diamantes, diamantes! Há anos que é só isto - queixava-se o produtor".
"Estética
Uma mulher gorda que queria perder peso chegou ao médico e disse:
- Corte-me uma perna".
Do livro "O senhor Calvino", em que as narrativas são um pouquinho mais longas do que as do livro anterior, e apresentam um grau de surrealismo antes não observado. Há, aqui também, a noção de brevidade da vida e de tudo o que a envolve.
"O animal de Calvino
De manhã Calvino dirigia-se à cozinha para dar de comer ao Poema. O bicho devorava tudo: nenhum alimento era desagradável ou esquisito - e tudo para ele parecia ser alimento.
Ao fim do dia, depois de terminadas as tarefas urgentes, o senhor Calvino acariciava-lhe o pêlo com a delicadeza e a hábil distração aparente dos tocadores de harpa. Naqueles instantes, o universo abrandava as rotações ganhando a lentidão inteligente dos pequenos felinos.
Dar banho ao Poema não era fácil; ele como que resistia à limpeza, exigindo de modo saltitante uma liberdade impudica que só a sujidade permite. Mas bem pior ainda era dar ao bicho uma injeção. Era a única altura em que as garras eram dirigidas a Calvino. Aquele animal preferia adoecer, a ser medicado.
Um dia o animal caiu da janela do 2° andar, e morreu.
Calvino, no dia seguinte, adotou outro.
E deu-lhe o mesmo nome".
A partir, então, destas leituras, está feita a proposta aos integrantes do Círculo. Produção de narrativas curtas. Que muito exijam do leitor dar vida a elas.
Ítalo Puccini, pesquisador mediador.