domingo, 30 de maio de 2010

Arengas Matinais - por Juliano R. Maciel

“Vamo acordando vagabundo.” Tinha alguém ali naquela cadeira ao lado da cama, onde sempre ficava um terno surrado.
“Quem taí?” Uma luzinha vermelha cor de brasa acendeu e logo apagou. Um cigarro.
“Não é óbvio?” Quem fumava na cadeira era um esqueleto. O cara na cama sentiu-se todo mole, uma pasta de carne e tendões.
“Que porra é essa?!”
“Pois é, que porra é essa de ficar dormindo até as nove e quinze?” o esqueleto do cara levantou e abriu a janela.
“Como você saiu?”
“É fácil.” O esqueleto do cara deu mais uma tragada, a fumaça saía pelos buracos da caveira.
“Poxa, meus dentes tão horríveis.”
“E sua coluna também.” Dizendo isso o esqueleto do cara apontou umas duas vértebras tortas.
O cara ficou sem falar.
“Acho que vou dar uma volta cara.”
“Aonde você vai?”
“Pra que ficar aflito? Sem mim você pode ficar bem quietinho aí.”
“Então porque me acordou?”
O cara não teve resposta. O esqueleto do cara foi até o armário e abriu.
“Vai se vestir?”
“Não pode?”
“Mas vai cobrir o quê?”
“Serve isso?” e abriu os braços, mostrando para o cara todos os ossos.
“Ok, mas cobrir o quê?”
“Sei lá” o esqueleto do cara olhou com órbitas vazias o buraco da bacia, a pélvis descarnada.
“Você sente frio?”
“Não.”
“Então, vai cobrir pra quê?”
“Sabe cara, se você fosse mulher e eu fosse o esqueleto de uma mulher, eu até me cobria. Esse buraco aqui da pélvis, da bacia sabe... sugere coisas pra quem tem mais osso do que cérebro.”
“Pois é, mas a gente não cobre por que sugere. A gente cobre... sei lá, por vergonha, pra proteger, sei lá.”
“Só se for proteger dos olhos dos outros.”
“Acha que vão te olhar se você sair na rua?”
“Acho. E vão logo descer a vista pros ossos entre os fêmures. Não só pra saber se sou de homem ou de mulher, é porque gente gosta de bizarrice mesmo.”
“Homem ou mulher? Esqueleto agora é homem ou mulher?” O esqueleto do cara foi até a cama e arrancou um fio de cabelo do cara.
“Isso aqui é homem ou mulher?” mas o cara não entendeu aquele ponto de vista da lógica esquelética.
“Tá bom, ok, ok, veste o que quiser.”
“Só ia colocar um casaco.”
“Você disse que não sente frio...”
“Claro. A gente se cobre porque é bonito se cobrir. Ninguém vai ligar pra mim na rua, mas desde que eu esteja com um casaco. Pode ver: que boa coisa, estratégia pura. Usar a roupa pra não se incomodar. Pra desaparecer aparecendo.”
“Incomodar?”
“É, com os outros. Quem recebe toda a carga é a roupa, o corpo dentro fica isolado. Reclamam da roupa, não do corpo, mesmo que seja um corpo só de ossos. Agora, sem roupa, não dá... chama atenção demais. Sabe, o homem é o esqueleto da roupa.”
“Então tem muita gente com fratura exposta por aí.”
“É, pois é. Quer que eu traga algo da rua?”
“Hmm. Sei lá, compra pão.”
“Ok.”
“Que horas você volta? Eu tenho que digitar uns relatórios.”
“A gente se vê.”
“Ô, peraí! Vê se volta heim! Preciso de você!”
“Será mesmo?” o esqueleto do cara colocou um casaco. No bolso, pôs um isqueiro, uma carteira de cigarros e um pouco de dinheiro miúdo. O cara ia dizer que era outro bom motivo pra se vestir, esse de carregar as coisas, mas não estava pra papo.
“Volta heim.” Limitou-se a dizer, mole como estava. Podia sentir o coração empurrando os pulmões a cada batida.
O esqueleto do cara saiu e encostou a porta do quarto. O cara ouviu os pés batendo que nem chocalho pelo corredor, descendo as escadas e saindo para a rua.
O cara olhou no relógio. Estava tarde.
“Filho da mãe, não trancou a porta.” Fechou os olhos.
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produção proveniente do segundo encontro do Círculo de Leitura e de Produção Escrita.

2 comentários:

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  2. Olá Ítalo! Fiquei muito feliz com a tua visita, comentário e, principalmente, por teres te tornado seguidor do nosso humilde espaço. Isso somente aumenta a minha responsabilidade de melhorar tudo aquilo que crio e escrevo. Espero que voltes mais vezes, pois será sempre um prazer renovado. Eu particularmente, com certeza aqui voltarei mais vezes, pois tens um espaço muito interessante e bastante aconchegante, e pegue ante. Rsrs.

    O "Arengas Matinais" é um belo conto, muito bem coordenado e super intrigante. Diálogo da massa corpórea com o esqueleto. Adorei!

    Abraços e um ótimo final de semana pra ti e para os teus.

    Furtado.

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